terça-feira, 20 de agosto de 2013

Projeto Corpo Estranho

O Projeto Corpo Estranho consiste em uma história escrita por várias pessoas diferentes, em que uma não sabe o que aconteceu na trama, além de um determinado número de linhas, antes dela. Assim, a narrativa acaba virando algo surpreendente para todos os participantes, pois ninguém acompanha todo o processo de criação.

Foram escritos um total de dez capítulos, cada um com tamanho entre cinco e oito mil caracteres. Somente uma lista com os personagens e suas descrições em até cinco palavras e os últimos dois mil caracteres do texto anterior foram passados ao escritor seguinte, que deveria fazer o seu capítulo e passar a mesma coisa para o autor seguinte. Os autores também não sabiam quem escreveu antes e depois deles.

Autores: Erick Vaz, Gabriel Machado Pureza, Gabriel Marcondes, Jonathan Holdorf, Júlio Gutheil, Laysla Brigatto, Lucas Melo, Maria Eduarda Schalanski e Nícolas Vaz.
Organização: Gabriel Machado Pureza
Revisão: Kalhiane Alves

Para que cada um possa ler o projeto da forma que lhe agradar mais, ele foi postado abaixo em duas formas. A primeira é um texto corrido, sem divisão por capítulos ou indicação de autores. A segunda, o texto dividido em dez capítulos, mostrando qual parte do texto o próximo autor leu, mas sem nomear os autores. E por fim, há uma lista com os autores e seus respectivos capítulos no final do post. Para ficar mais fácil de achar cada parte, é só dar Ctrl+F nos seguintes caracteres (incluindo os colchetes):

[Projeto Corpo Estranho 1] Capítulo único e sem marcações.
[Projeto Corpo Estranho 2] Dez capítulos com marcações onde cada autor começou a ler.
[Lista de Autores] Nome dos autores dos respectivos capítulos.

Observação: Peço desculpas por o texto não estar justificado, mas todas as vezes que tentei arrumar ele, o texto acabava ficando todo bagunçado, com parágrafos entrando uns dentro de outros. Deve ser algum problema com o blogspot. Então, para postar mais rápido, optei por deixar assim, mesmo.

[Projeto Corpo Estranho 1]
Capítulo Único
Joel estava esperando o ônibus. Queria mudar de vida, sair daquela cidade e deixar todos os seus problemas para trás. Em sua mochila, somente roupas e provisões necessárias para alguns dias andando por aí, além de algumas centenas de reais, todas as suas economias. Estava prestes a dar um passo gigante em sua vida, tomar uma decisão da qual nunca poderia voltar atrás. Respirou fundo. Levantou do banco e entrou no ônibus. Lá dentro, sentou ao lado de uma garota ruiva que estava dormindo com a cabeça encostada na janela. Pegou o celular e entrou no Facebook. Nenhuma atualização. Decidiu escrever o seu post. Apostou que todos os seus amigos achariam que ele suicidou-se depois do que escreveu. Foi uma mensagem melancólica e cheia de despedidas, agradecendo a todos por terem sido uns filhos da puta. Na verdade, eles nem tinham tido muita influência na sua decisão de fugir, ele só queria zoar com eles. Divertia-lhe bastante a ideia de deixar todos os preocupados (principalmente os seus pais, eles mereciam mais do que todos) e ir explorar o mundo. Após fazer isso, jogou o seu celular pela janela. Não precisava mais dele. A viagem durou horas. Ele passou por diversas paisagens: pradarias vastas, cujo fim era impossível se ver de dentro do ônibus, rios, cidades, vilarejos e, ao anoitecer, enxergou o mar ao longe. Nunca havia visto o oceano pessoalmente, e naquele momento, vendo o pôr do sol, decidiu que era ali que queria ficar. Levantou, assustando a garota ao lado, e foi até o motorista. “Pare o ônibus”, gritou, “eu preciso descer!”. O homem o fez, e ele desceu correndo, com a mochila nas costas. Não ligava para o que pensariam dele, só sabia que seria feliz naquele novo lugar. Infelizmente, assim como o sol vai embora, a animação de Joel também foi. A praia era deserta e não havia como viver ali, a não ser que ele bebesse água salgada, comesse caranguejos e dormisse na areia. Passou a noite com fome e um pouco decepcionado, após ter caminhado por quilômetros, sem achar nenhum lugar em especial. Mas assim como o sol volta na manhã, a esperança voltou. Três homens olhavam o garoto com curiosidade quando ele acordou. Apresentaram-se como Bob, Jack e John, os três irmãos viajantes. O objetivo de vida deles era conhecer todo o mundo, andando por aí em uma carroça puxada por dois cavalos. Assim como Joel, eles eram novatos, haviam saído de casa há poucos dias. Juntos, os quatro andaram por vários lugares conhecendo as maravilhas do país. Um mês se passou e os três chegaram à cidade de Nova Utopia. Era um lugar magnífico, onde tudo funcionava bem e todos eram felizes. Todas as pessoas tinham um sorriso no rosto enquanto andavam pela rua e os cachorros andavam sempre balançando o rabo. Os irmãos viajantes se decepcionaram com toda a felicidade do lugar. Segundo eles, não havia graça nenhuma em um lugar onde tudo desse certo, e eles acharam necessário continuar sua jornada, buscando locais que fossem realmente divertidos. Joel, por outro lado, estava com saudade da estabilidade trazida pelo lugar, que parecia um bom lugar para se recomeçar. Ele conseguiu um emprego como carteiro na cidade e logo sentiu a felicidade que inundava o ar. Era quase mágico, como se todas as pessoas se sentissem melhor por simplesmente andar pelo lugar. Ele gostava do emprego, os dias passavam rápidos e sempre era bem recebido pelas pessoas. Mas tudo que é bom tem um fim, e o fim da carreira de Joel como carteiro em Nova Utopia chegou na forma de um profeta. “Saiam dessa cidade enquanto podem”, disse, “algo terrível está para acontecer, tão terrível que irá mexer com o tempo e o espaço, alterando a continuidade das coisas para todo o sempre”. Nenhum dos habitantes da cidade levou aquilo a sério. Afinal, eles viviam felizes e nada de ruim jamais lhes aconteceu, então por que isso haveria de mudar? Apesar de estar desconfiado, Joel decidiu continuar morando na cidade, e por dois dias, nada aconteceu, até que a tempestade veio. Todos em Nova Utopia acordaram de mau humor. Como mágica, tudo começou, e assim, tudo terminou. Uma tempestade fazia os céus ficarem negros, e raios ameaçavam cair sobre a cabeça de qualquer um que saísse de casa. Chegando ao correio, Joel foi demitido. “Vá para a puta que pariu” foi a explicação de seu chefe. Algo estava errado. Ele ficou vagando triste pela cidade tentando entender o que havia acontecido. Até o dia anterior, todos eram felizes e todos os dias eram ensolarados. Até mesmo os dias de chuva eram ensolarados, se é que isso é possível, e em tão pouco tempo, aquela tempestade tomava os céus, e o humor de todos estava péssimo. A utopia de Nova Utopia havia acabado. A dor do fim prematuro da carreira de carteiro fez o jovem perder toda a esperança que havia adquirido quando chegou à cidade. Chateado, decidiu andar na chuva, esperando que algum tipo de revelação divina lhe mostrasse o caminho certo. Enquanto andava, lembrava das palavras do Profeta. No meio da tempestade, uma voz chamou a atenção de Joel. Ele olhou para o lado e viu a moça ruiva do ônibus. Ela parecia irritada e falava com um homem, que gesticulava muito com as mãos. Aproximou-se e falou com ela: “Você é a moça ruiva do ônibus!” Ela olhou para ele, e demorou um minuto para reconhecê-lo, então sacou uma pistola e disse: “E você vai morrer” Assustado, o ex-carteiro vacilou e caiu no chão. Ainda tinha tanto para fazer em sua vida, não poderia ser morto por uma garota em meio a uma tempestade. Nesta hora, o Profeta apareceu e se colocou entre os dois. “Você pode sobreviver, Joel.” “Mas como?” “Você deve seguir até o Monte Realmente Alto E Muitíssimo Difícil De Se Achar e pegar a Gema Incrivelmente Bonita E Poderosa Que Pode Salvar O Mundo.” “Mas, eu... eu não sou nenhum tipo de herói!” “Agora você é, moleque, e sua jornada começou, some daqui.” Com lágrimas no rosto, Joel saiu correndo. Não fazia ideia do que estava acontecendo e nem de como conseguiria salvar o mundo, se é que faria isso. Após quinze minutos em meio a chuva e vento gelado, Joel finalmente percebeu que não era mais necessário correr. Tentou, inutilmente, reconhecer o lugar, porém o medo não permitiu que prestasse atenção nas ruas em que passava. "Ótimo! Como se já não bastasse todas as loucuras desse dia, agora não faço ideia de onde estou". "Como assim, querido?" - uma voz trêmula e muito baixinha parecia sussurrar nos ouvidos do ex-carteiro, que agora adicionara mais um nível frio em sua espinha. Olhou para os lados e descobriu que estava alucinando, pelo menos torcia para que fosse isso. "Oi? Estou falando com você, querido" "É claro que é o meu cérebro brincando comigo. Só pode! Eu estou faz horas correndo na chuva e sem comer. Isso é um problema, certo?" "Ei, olhe para baixo". Joel seguiu o conselho e olhou para o chão esburacado da calçada, encontrando uma poça cristalina com um reflexo avermelhado, mas não conseguia enxergar direito o que era. Esfregou os olhos e viu o que temia: a Moça Ruiva. Ela sorria, mostrando seus dentes brancos e perfeitamente alinhados e os lábios vermelhos como sangue. O ex-carteiro rapidamente levantou a cabeça, conferiu todos os lados do beco e não a localizou. Ela continuava apenas um reflexo na água. Então Joel fez a única coisa que a sua mente conseguiu pensar no momento: espalhar o conteúdo da poça. Não demorou muito tempo para ele concluir que aquela não tinha sido a sua melhor decisão, pois agora a Moça Ruiva estava realmente na sua frente. "Mas isso não é ótimo? Quando você pensa que o nosso querido carteiro não vai conseguir entregar a encomenda, ele vem e surpreende mais uma vez" - ela ria e apontava novamente a pistola para o coração de Joel. Dessa vez o homem decidiu aceitar a profecia, ou pelo menos fingir que existia. Criou coragem e rapidamente a chutou nas pernas, fazendo-a cair. Enquanto ela se recuperava, Joel saiu correndo para o outro lado do beco e viu um Corvette 78 azul se aproximando em velocidade. Ele fez o máximo para chamar a atenção até obrigar o veículo parar. "Por favor, me leve para longe daqui" - enquanto falava, abriu a porta e entrou no carro. "Calma aí, amigão. Pegue essa garrafa de Rum e diga o que está acontecendo exatamente" - O motorista, com um cavanhaque grisalho e uma jaqueta de couro com as mangas arrancadas olhava pelo retrovisor do Corvette para garantir que ninguém os seguia. "Você não vai acreditar em mim. Adianta falar?" "Se você quiser que eu o leve para algum lugar ou salve o seu corpinho de quem quer que seja, pelo menos tenho que saber qual é a situação". Joel explicou sobre a Moça Ruiva, sobre a Profecia e sobre o fato de ser o novo super-herói do mundo. O motorista do Corvette não disse uma palavra até parar em um bar na beira da estrada. "Místico's Bar" - leu em voz alta esperando alguma resposta. "O que diabos estamos fazendo aqui?". "Shh. Se o amigão ficar quietinho e esperar, verá como tudo será resolvido". Caminharam até a porta de entrada do estabelecimento completamente vazio. O homem de cavanhaque grisalho guiou Joel até o fundo do Místico's, onde havia uma porta aberta. "Alguém por aí? Trouxe uma encomenda." "Moser? É a terceira vez nessa semana que você traz alguém aqui. Espero que esse valha a pena" - Jack se aproximou de Joel, observando-o. "Ao contrário dos outros, esse tem pleno conhecimento da Profecia e jura que enxergou a Moça Ruiva caminhando pelos reflexos das poças de água". "Ela anda fazendo isso novamente? Esse truque não envelhece. Ei, John, Bob, venham aqui". Os dois irmãos foram até eles e analisaram calmamente o jeito de Joel, tentando avaliar se ele era o escolhido. "Então?" - o ex-carteiro já não tinha mais paciência. Os irmãos Bob, Jack e John caminharam ao redor de Joel e o levaram até uma mesa no centro do bar. Sentaram-se e encheram seus copos com uma bebida verde, não muito confiável para o gosto do aspirante a herói, e tentaram explicar com calma qual seria o futuro desta jornada. "Nós somos viajantes, Jack, John e eu. O nosso amigo Moser aqui recruta pessoas com possíveis chances de se tornarem líderes nestas aventuras. Geralmente as nossas expedições não levam mais de uma semana e são incrivelmente inúteis, pois nós acabamos acampando em algum lugar do mundo. Mas não dessa vez. Quando ouvimos os rumores de que a Profecia havia finalmente sido anunciada, dedicamos todas as nossas forças para achar o escolhido. E esse, meu caro, pelo jeito é você. Apenas precisamos de uma coisa sua antes de partirmos" - Bob explicou, não tudo, mas o suficiente para acalmar os ânimos de Joel. "Certo, entendi, mais ou menos. Mas onde a Moça Ruiva entra nessa história? Ela está me perseguindo, sabe?" "Tudo em seu tempo. Ela não será um problema agora que você está conosco. Para a sua felicidade nós temos tudo o que você precisa para ficar protegido. Pelo menos, mais a salvo do que lá fora, no escuro" - Bob concluiu a conversa. Joel já estava se levantando para sair e começar a jornada, seja lá para onde fosse, porém Moser colocou a mão em seu ombro e o obrigou a sentar novamente. "Nosso trabalho ainda não acabou" - John anunciou, olhando seriamente para o rosto de Joel. - "Cada um de nós tem um copo com uma substância verde no seu interior. Não se preocupe, amigo, ela tem um delicioso sabor de menta. Nós devemos beber o conteúdo para que o processo seja concluído". Desta vez ninguém questionou. Ao mesmo tempo pegaram o copo e beberam. Quando abriram os olhos estavam cercados por uma floresta infinita, com árvores gigantes e de folhas secas, e um céu tão negro e aterrorizante que fez os viajantes tremerem as pernas. Não existia mais bar, nem Nova Utopia. No horizonte, puderam ver uma montanha com um pico dourado apontando para o céu. Ela era maior e mais distante do que qualquer coisa que tinham visto em suas vidas. Joel concluiu que aquele era o "Monte Realmente Alto E Muitíssimo Difícil De Se Achar e pegar a Gema Incrivelmente Bonita E Poderosa Que Pode Salvar O Mundo", previsto pelo Profeta. "Bem, aparentemente funcionou, e pelo jeito você é mesmo o herói da Profecia" - Jack anunciou, com um sorriso no rosto misturado com uma ansiedade incontrolável. "E agora?" - Moser questionou, realizando que não teria mais o seu Corvette 78. "Agora nós vamos explorar!" - Joel exclamou. Todos voltaram os olhos para o ex-carteiro, surpresos. "Esse lugar, meus amigos, está me deixando extremamente confortável e confiante. Vamos tirar vantagem disso antes que acabe!". "Mas para onde nós devemos ir?" - Moser perguntou enquanto o grupo caminhava para frente, cada vez mais se embrenhando na floresta. "Não sei como, mas conheço exatamente o lugar onde devemos ir" - Joel, antes cego para toda a Profecia, agora os guiava como se tivesse passado toda a sua vida naquele mundo. Percebeu, então, que aquele era o seu verdadeiro lar. Os cinco aventureiros caminharam por horas, subiram montanhas e enfrentaram tempestades, e encontraram uma cabana, que ficava na beira de uma lagoa incrivelmente cristalina. Um arrepio subiu pelo corpo de Joel ao ver o reflexo da Moça Ruiva pairando sobre a água, apenas aguardando a hora de atacar. Munido de coragem, virou as costas e continuou caminhando. "Vamos". Eles o seguiram e entraram na casa de madeira. Lá, encontraram o Profeta sentado à mesa, tomando uma xícara de chá. Desceu a peça de porcelana e recitou os versos: Na Floresta Seca chegou; Com seus amigos viajou; Mas agora tudo está prestes a mudar; Pois a batalha vai começar. O Profeta sumiu e levou consigo a cabana. O grupo ficou parado em frente ao lago, que agora borbulhava como uma chaleira fervendo. Os cinco homens observaram a criatura emergindo e transformando a água, antes cristalina, em uma onda negra. Joel olhou para os seus companheiros e, engolindo seco, exclamou: "Fodeu!". “Ok, alguém aqui sabe usar uma espada?” - Joel gritou enquanto o suor escorria pelo seu rosto. O monstro havia emergido do lago, era gigante, gordo e pus escorria por grandes buracos espalhados pelo seu corpo mutante e truculento. “Mesmo se alguém soubesse usar, não serviria de nada, porque não temos armamento nenhum!” - Moser gritou inundado de nervosismo, enquanto o monstro, agora muito diferente da Moça Ruiva de antes, começava sua marcha para trucidar os cinco aventureiros. Suas banhas balançavam e faziam o lago se desfazer em grandes ondas que, ao mesmo tempo em que aterrorizavam os rapazes, banhava e deixava as árvores ao redor felizes ao terem nascido e crescido naquele enorme campo de batalha. “Pense, Joel, pense!” - foi quando se lembrou que ele era o herói da profecia, e que, como herói, devia ser capaz de conjurar vários feitiços e magias que com certeza os tirariam daquela tragédia. “Ok, tenho uma ideia, pessoal.” - todos olharam para ele, esperançosos e molhados. Era possível que Bob, Jack e John estivessem chorando. “E qual é a ideia?” - os três irmãos berraram em uníssono. “Apenas observem.” - Joel deu três passos para trás e esticou os braços, apontando as palmas de suas mãos para o monstro, que continuava a andar, de um modo inacreditavelmente lento. “Há! Vai! Chamas!” - Joel parecia surpreso ao ver que nada saiu de suas mãos. Nadinha. Nem uma fagulha. Os três irmãos e Moser o olhavam de forma pesarosa e catatônica. “Essa era sua ideia? Gritar? PORQUE EU POSSO GRITAR BEM ALTO, ESTÁ ME OUVINDO? PRECISAMOS FAZER ALGO. DE VERDADE!” - Moser gritava e corria com os braços para cima, rapidamente cansou de fazer a mesma rota o tempo todo, que consistia em correr em volta de todos que estavam no local. “Ok, ok, se acalma! Foi apenas um teste. EU TO SENTINDO AGORA!” Novamente Joel se posicionou: braços para frente, mãos abertas e palmas apontadas para a criatura, que por sinal parecia não ter saído do lugar. “CHAMAS DIVINAS PODEROSAS QUE PODEM DERROTAR UM MONSTRO, ATACAR!” - e então o mais surpreendente aconteceu, o Profeta saiu de um portal negro, posicionado em um local impossível, talvez uma dimensão alternativa. “Joel, meu filho... suas tentativas nunca darão certo, as palavras estão erradas. Todas erradas. O que você acha que é certo, é errado. Tenta agora o errado.” - e sumiu do mesmo jeito que apareceu, sem avisar, sem fazer um som. “Eu preciso de um tempo pra pensar, rapazes.” - Joel sentou, como se o monstro não estivesse andando em sua direção, mesmo que tão lento que parecia na verdade andar para trás. “O certo é o errado... o errado é o certo... hmm...” “JOEL!” - Moser gritou, não sabendo se olhava para o monstro ou para o amigo misteriosamente calmo diante daquela situação extremamente perigosa. “FAZ ALGUMA COISA!” “JÁ SEI!” - Joel levantou em um pulo e se posicionou. Braços. Mãos. Dedos. Palmas. “SAMAHC SANIVID SASOREDOP EUQ MEDOP RATORRED MU ORTSNOM, RACATA!” Primeiramente veio o espanto, os pequenos olhos de Jack, Bob e John brilhavam, tanto pelas chamas que explodiam das palmas de Joel como pela admiração diante tamanha beleza mágica. Depois veio uma surpresa maior ainda: não tinha sido o suficiente, o monstro continuava de pé. “Merda!” - Joel deixou escapar. “Merda mesmo, vamos apenas sentar e esperar a morte.” - Moser choramingou. E os cinco sentaram, o monstro continuava em sua correria, lenta... Muito lenta. Como sabiam que iam demorar a morrer, fizeram uma pausa para comer, contaram piadas e se lembraram do passado. Riram e riram mais um pouco quando Jack se engasgou com a cerveja. Voltaram a rir mais ainda quando Bob resolveu urinar no lago onde o monstro residia. Quase perderam o ar quando John jogou um pedaço de pão certeiro na boca da criatura, até perceberam que não tinha valido a pena gastar comida para rirem um pouco. “E agora?” - Joel perguntou, ainda rindo um pouco com as recentes memórias. “Eu tive uma ideia.” - exclamou Bob. “Olha pra esse monstro, estamos aqui há umas duas horas, mais ou menos, e ele parece que continua no mesmo lugar, certo?” “Certo.” - Joel, John, Jack e Moser responderam. “E se... a gente correr?” "Correr? Não, correr é pra covardes!" - Joel rechaçou a ideia. "A gente podia ir andando mesmo", completou. Todos deram de ombros, como se dissessem "pode ser". No fundo dos seus corações, a diversão dos últimos minutos pedia que ficassem ali por mais tempo, pois dificilmente teriam outros momentos tão descontraídos pelo resto da jornada. Sem que alguém desse um passo sequer, Joel voltou a olhar para o lago e para o monstro, que seguia impassível em seu avanço. Uma névoa fina começava a se formar, conforme a noite caía repentinamente e a temperatura baixava rapidamente. O Profeta apareceu novamente, mas desta vez sem profecia. Apenas sorria. Quem apurasse os ouvidos perceberia um "hihihi" bem agudo e abafado, como se o Profeta segurasse o riso. Ao ver que era observado pela aparição, Joel remoeu novamente sua profecia anterior. "O certo é o errado... o certo é o errado..." "O CERTO É ERRADO!!!" berrou aos seus colegas. "Então o certo agora é vandalismo!" Toda a turma avançou para dentro da água com paus e pedras, e tochas e telhas, sem se preocuparem em pensar de onde elas teriam vindo e como conseguiam carregar tantas coisas em suas mãos. Enquanto a neblina espessava, viram sair do lago outro rapaz, carregando uma TV de LED gigantesca. Seu nome era Cleyson, porém ninguém perguntou. "Cara, sabe o que mais me incomoda? É que as pessoas roubam a televisão, mas não levam o controle remoto!" - disse Moser. Uma risada profunda e horrível foi ouvida. O monstro tinha senso de humor, ao que parece, mesmo que ainda estivesse ocupado em seu avanço impassível. Mas a descontração durou pouco, a neblina tornou impossível enxergar mais do que um palmo à frente, e logo todos os aventureiros estavam desorientados. Podem ter sido minutos, mas pareceram horas até que o sol brilhasse outra vez e a névoa se dissipasse. Na luz da manhã, Bob apontou para seu irmão Jack, em tom de espanto. "Jack! O que houve?" "Aconteceu algo horrível, Bob... eu molhei minhas meias. Odeio andar de meias molhadas. Quero ir embora deste lugar o mais rápido possível!" "Não, Jack, olhe sua roupa!" Jack estava com suas roupas cobertas de sangue. Olhou para as mãos, que também tinham sangue, e sujeiras embaixo das unhas. "Você... matou o monstro, Jack?" - perguntou John. "Não me lembro de nada... só me lembro de avançar em direção ao lago... a neblina... e aí o sol nasceu e aqui estamos". Joel gritou de outro canto do lago. "Pessoal, o monstro sumiu! Mas o Moser também. Vocês estão bem?" Cleyson, que estava dormindo na praia com um tablet no colo, esfregou os olhos, disse que estava bem, levantou-se e entrou numa caverna, que não estava ali antes. O Profeta apareceu na porta da mesma caverna, fez um aceno com a mão e entrou. A caverna também entrou em si mesma e sumiu. O desespero bateu forte no coração dos viajantes. Sem Moser e sem carro, sem conhecerem o caminho a fazer; mesmo o alívio por terem destruído o monstro do lago não era páreo para a aflição que a incerteza do futuro trazia. Saíram andando, sem muita esperança, pelo único caminho possível, continuando a estrada que os trouxera até ali. Jack fedia e não parava de reclamar das meias molhadas. As horas se arrastavam, mas não mais do que os quatro andarilhos, sem ânimo e sem esperanças. Um Mustang buzinou e parou próximo aos aventureiros. Dele saiu uma figura mais ou menos conhecida. Seus cabelos vermelhos esvoaçantes e bochechas rosadas delicadas contrastavam com os ombros largos, que contrastavam com a cintura fina e quadris largos e redondos, que contrastavam com a canela peluda e cheia de hematomas. "Moser... você está... ruiva..." - gaguejou Joel. "E gostosa!" - reparou Jack. "Sim, graças a você, Jack. Na verdade, eu não sou mais quem vocês pensam. Eu sou uma mistura da ruiva monstro do lago com o Moser. Pode me chamar agora de Musa." - explicou a excitante e perturbadora criatura, enquanto andava em direção a Jack, e depois deu-lhe um beijo nos lábios. "Meninos, entrem no Mustang. Temos ainda muita estrada pra percorrer. E o Mustang é bem melhor que aquele Corvette." Animados, todos entraram no belo carro. Joel, Bob e John ficaram apertados no banco de trás, porque estes carros esportivos não são feitos pra levar tanta gente assim. No banco do passageiro estava Jack, encantado e apaixonado por sua criatura, Musa. "Então, eu te criei?" "Isso. Me criou com as próprias mãos, ontem no lago. Você arrancou pedaços de Moser e da Ruiva, e montou a mim, criação máxima que um ser humano poderia ambicionar. Um ser feito para o amor" "AAARGH" - gritou Bob, desgostoso com o irmão. "Você podia ter criado esse 'ser do amor' sem gogó, cara!". Mas Jack nada ouvia. Aos seus olhos, sua criatura era perfeita. E logo mais esqueceria até mesmo de que era seu criador, e teria apenas uma coisa em mente: aquele era seu amor para o resto da vida. Centenas de milhas de asfalto ficavam para trás. Embora, estranhamente, nenhum sinal de civilização surgisse, por mais que percorressem a estrada, nenhum dos cinco viajantes parecia se preocupar com isto. Havia no carro uma atmosfera de felicidade, a alegria daqueles momentos no lago que parecia perdida para sempre, e todos só queriam aproveitar pelo maior tempo que pudessem a sensação de paz, segurança e velocidade daquele Ford V8. Desde que não tivessem que fazer vaquinha para pagar a gasolina. A próxima noite chegou e trouxe outra vez a névoa, que começou fina, mas foi se espessando até tornar inviável a continuidade da jornada por carro. Pararam para esperar pelo próximo nascer do sol. Desceram do carro para esticar as canelas. E ali, num ressalto, Joel contou uma pessoa a mais no grupo em meio à neblina. Era o Profeta, outra vez. "Escaparam do ódio transformando-o em amor e isto foi lindo; mas chegará o tempo em que vão se deparar com o oposto". E sumiu, como de costume. Musa observava o estranho homem sumir. Achou curioso. Tudo era curioso. Ela era nova, recém criada e aquele mundo inteiro era novo para ela, mesmo que, ao mesmo tempo, já tinha conhecimento daquelas coisas. Essa contradição não impedia Musa de aproveitar os seus descobrimentos, a natureza era linda, a velocidade no Ford V8 era divina. E seu criador, Jack. Ah seu criador. Era simplesmente perfeito, sentia-se absolutamente feliz e completa por ser criatura de tal homem. Não prestava muita atenção nos outros três, mas eram boas companhias. Era hora de dormir. O amanhecer prometia novas aventuras e novas coisas para se ver. Musa adormeceu no colo do seu criador, sonhando com o mundo lindo ao seu redor. Acordou numa cama, em um quarto. Cômoda, abajur, roupeiro e um ventilador de teto. Um quarto como qualquer outro. Estava tampada e de pijamas. Confusa não entendia o que acontecia, cambaleou em direção à porta iluminada. Ouvia apenas os seus passos e o barulho de uma forte chuva, percorreu o corredor de uma casa, uma casa sem nada de especial, apenas uma casa, como qualquer outra que se encontra por aí. Musa estava entrando em desespero, não entendia o que fazia ali, chamou por Jack, precisava de seu criador, de um guia de uma so- Alguém bateu na porta da frente. Musa a abriu. - Com licença - disse o homem. Usava um sobretudo pesado e molhado pela chuva. Na sua cabeça um chapéu escondendo suas feições. Escorava um guarda-chuva aberto na parede. - Mas... o que está ac- - Shhhh. Vá para a cozinha, já a acompanho, Musa. Musa obedeceu sem questionar, na porta da cozinha e virou para olhar o estranho que tirara o chapéu. Seu rosto era duro e branco como uma caveira. Era uma caveira. Desconcertada, Musa sentou na mesa. O esqueleto de camisa e suspensórios sentou na frente dela, encarando-a com buracos negros. Duas xícaras de chá apareceram na mesa. - Quem... quem é você? - Você sabe quem eu sou - Sua voz era profunda e solene e estranhamente familiar - Onde eu estou? - Musa estava estranhamente calma, devia ser o chá. - Em lugar nenhum. Num cantinho da criação. - Você faz isso frequentemente? - O quê? - Trazer gente pra lugar nenhum. - Não. - E por que está fazendo isso agora? - Eu não sou apenas responsável por finais, os começos também são meus. Você não veio d’Ele, você é uma aberração criada por seres inferiores. - Isso dificilmente é culpa minha, né? Me trouxe até lugar nenhum para me ofender? - Não, vim aqui para te dar uma chance. - De quê? - Se livrar da vida de merda que está reservada pra você. - Mas essa não é a sua única função? - Mais cedo, no caso. - E minha vida não é uma merda. Minha vida é perfeita, fui criada para amar e ser amada, não existe nada mais belo. - Não me faça rir - Ela ria, uma visão aterrorizante - Você foi criada de forma pérfida e esse amor falso só trará sofrimento. Aqui você está livre das ilusões que vieram junto contigo, pode ver tudo como realmente é. - E ainda acho tudo perfeito, eu mesma, Jack, Joel, Bob, John o Mustang. Quem precisa de mais? - Qualquer um. - Vá se foder. - Deveria pensar duas vezes antes de mandar eu me foder. Ele não vai gostar disso. - Vá se foder você e Ele. Todos os três d’Ele. A Morte suspirou. - Que foi? Cansou de fazer seu trabalho? - Esse não é meu trabalho, é só um favor. - Ah é? Pra quem? - O homem que eles chamam de Profeta. - E por que alguém como você deve algo a alguém como ele? - Bem, uma vez o cara que vive com ele, Cleyton mat... Hey! Isso não importa. - Mas é cl- - Cale-se. A Morte tomou o chá por longos minutos, parecia gostar. - Então. - Então. - Vou acabar logo com isso. Primeiro, você não é perfeita, Musa. Você tem uma personalidade cheia de furos, foi mal criada, sentirá falta de muitas coisas e pior, seu criador o criou como uma transexual. - E o que diabos isso tem de errado? - Nada, mas a sociedade escrota dos humanos terá alguns problemas com essa decisão. - Foda-se a sociedade escrota dos humanos, eu só preciso do meu criador e dos outros três. - Ha, os outros três... Bob e John, preciosos irmãos do seu criador que você parece gostar tanto, bem, eles não são nada de bom. - O que diabos você quer dizer com isso? - Dois anos atrás os dois juntos estupraram uma garota de 16 anos. Receber uma notícia dessas é chocante, mas receber essa notícia da própria Morte, em lugar nenhum é arrasador. Mesmo com seu conhecimento limitado, Musa sabia no que aquilo implicava. Estava com ânsia. - Mas.... eles não importam.... podemos nos livrar deles... eu e Jack, criatura e criador....Ainda tem o Joel! - Joel. O que vocês sabem dele? - Bem, nada, mas... - Joel já me entregou mais gente do que um panfleteiro entrega panfletos numa tarde quente de verão numa capital de estado. É um psicopata de primeira, está apenas esperando a hora para se livrar de todos vocês. - Nós matamos ele primeiro! Se eu falar com Jack ele se livra dele...e dos irmãos! De todos eles! Ele me ama e eu o amo! - Ama? Lembre-se que ele é o cara que criou um ser por não conseguir ser amado, por ser um total fracasso. Você pode até amar ele, mas é porque ele te obrigou, você nunca teve escolha. Você viverá com ele, mas nunca será feliz, você é incapaz disso. O estômago de Musa revirou, seu peito apertou e sua mente disparou. Estava confusa, queria voltar pros braços de Jack, mas os argumentos eram tão contrários.... Não sabia o que fazer, aliás, não sabia nem o que poderia fazer. - Está na hora. - Hora do quê? - Disse que lhe daria uma chance, bem, está na hora. Ao redor de Musa lugar nenhum desapareceu. Na sua frente A Morte usava seu sobretudo e chapéu, na sua mão esquerda um guarda-chuva. A mão direita permanecia estendida em sua direção. Atrás dela apenas a cama em que acordou. - Viver ou morrer, Musa. Ela hesitou. Um clarão iluminou o quarto e Musa não pôde ver mais nada. Por segundos ela se levou a acreditar que A Morte atendera seu pensamento e tivesse a levado embora da vida terrena. A claridade exagerada desapareceu do quarto e Musa estava sozinha, sentada na cama e no escuro. Bem que a luz poderia voltar, sussurrou ela. Não gostava de escuro e aquele sonho – se é que fora um sonho – a assustou junto com a solidão do quarto não iluminado. Musa precisava voltar para Jack. Apesar de tudo ser contra isso, era esse o destino, ela não poderia negá-lo. Musa não precisava de Jack, mas Jack precisava de Musa e ela o amava suficientemente para se arriscar por ele. Às vezes, até duvidara desse amor. Talvez fosse apenas um carinho muito grande, afinal foi Jack o único que aceitou a sua nova pessoa. Foi o único que não se importava com o passado dela, o que importava para eles era e sempre foi o momento. Morrer tornaria as coisas mais fáceis, falou. Mal sabia ela que, a alguns minutos do hotel, Jack se aproximava com um saldo de duas costelas quebradas, uma sobrancelha cortada e uma perna estraçalhada. O sol rachava o seu couro cabeludo e parecia que o sangue escorria de suas veias e artérias com mais fluidez que o normal. Sentia-se fraco e com fome, mas tudo que passava pela sua cabeça era Musa. Na verdade, Joel. Precisava se livrar daquele desgraçado o quanto antes e isso estava destruindo sua vida e a vida de Musa. Tudo o que ele queria era passar a vida ao lado da mulher que ele amava e receber reciprocidade. Ao chegar à varanda do hotel, olhou confuso. Eram muitos quartos e ele não queria aparecer na recepção no estado que estava, já que a última coisa que precisava era chamar atenção. Precisou fazer um esforço para sentar embaixo de uma árvore e esperar. Além de não saber o quarto, não poder pedir ajuda e não ter como chamar Musa por meio de algum telefone, ele estava perdendo muito sangue. Se continuasse em pé, perderia muito mais do que sentado. Fechou os olhos e sentiu a brisa. Vozes conhecidas o tiraram da tranquilidade. Eram Bob e John. - Merda. Antes de Jack tentar se esconder, os dois o avistaram. - Veja só quem está por aqui. Aquele fracassado do Blackjack. Os estupradores se aproximavam de Jack quando Musa saiu de seu quarto, curiosamente, ao lado de onde John e Bob estavam hospedados. - Musa... – falou Jack, suplicante. Musa olhou em choque para a cena dos dois estupradores à sua frente, e seu amado vulnerável, embaixo de uma árvore, perdendo mais sangue que o recomendável para um ser humano. - Foge... – Jack sussurrou enquanto tirava de sua jaqueta de couro um canivete e cortava o tornozelo de Bob. John ouviu o grito desesperado de Bob e correu para ajudá-lo, mas então o barulho do gatilho atrás dele abafou a voz do irmão e parou no meio do caminho, dando meia volta para se deparar com a cena de uma Musa assustada e com uma pistola armada em mãos. Antes que pudesse decidir, desviou da mira da arma. Musa ficou confusa e disparou, tentando acertar John, mas a bala ricocheteou no tronco da árvore e acertou a coxa de Bob. Jack tentou se levantar para atacar John, mas este foi mais rápido e o acertou com um pontapé no rosto dele. Se não bastasse a sobrancelha, as costelas e a perna, agora Jack contabilizava um nariz quebrado. O pontapé foi o bastante para a sua cabeça bater na árvore e causar desmaio. A cena de Jack caindo desacordado e Bob chorando e gritando incessantemente no chão, enquanto seu pé praticamente se separava do tornozelo, ofuscou um John completamente furioso que corria para atacar Musa com unhas e dentes. Num piscar de olhos, eles já estavam rolando no chão em uma briga que envolvia apenas o contato físico como forma de defesa e ataque. Quando John conseguiu imobilizar completamente Musa, procurou a arma que ela deixara cair antes. Ao achar, balbuciou alguns xingamentos à mulher e tentou alcançar a arma sem sair de cima dela. Assim que esticou o braço para pegar a arma, um tiro acertou em cheio sua mão e a esmigalhou em segundos. John olhou para o toco que sobrou em seu braço e desandou a gritar, enquanto as lágrimas de raiva e de dor escorriam pelo seu rosto. Musa se libertou dele e, assim que pegou sua arma do chão para atirar em John, ele já não se encontrava ao lado dela. Olhou para o horizonte da estrada e o viu correndo além do rastro de sangue que lhe seguia. Musa voltou a sua atenção para o tiro que acertou John e não encontrou ninguém por perto. Só o som de um tiro perto da árvore onde estava Jack a acordou para a realidade. Ela correu à figura alta e loira que estava ao lado de Jack e que tinha acabado de acertar à queima roupa a cabeça de Bob. - Saia de perto dele agora! Um tiro no tronco da árvore. - EU FALEI PARA SE AFASTAR! Outro tiro, mas que dessa vez quase acertou o pé de Musa. Ela parou e viu que a mulher que estava perto de Jack não o ameaçava. Pelo contrário, estava limpando o sangue do seu rosto e estancando o sangue que ainda saía com muita intensidade de sua perna. - Vá até o Mustang e busque a compressa que você tem guardado no porta-malas. - Como você… Um olhar ameaçador por parte da desconhecida fez com que Musa obedecesse sem retrucar uma palavra. Buscou a caixa de primeiros-socorros que sempre guardava no fundo do porta-malas e a entregou para a mulher. Enquanto ela fazia a limpeza dos ferimentos de Jack, Musa pôde analisar melhor a aparência da mulher. Cabelos longos, loiro escuro, olhos distantes e de uma escuridão assustadora. Era muito mais alta que Musa e, no lugar da perna esquerda, percebeu que esta era substituída por uma prótese metálica. - Afeganistão. - O quê? - Afeganistão. - Ah, desculpe... – disse Musa, constrangida por não ter sido discreta ao julgar a mulher. - Tudo bem. Acontece. - Desculpe, mas... Você participou da Guerra? - Meu ex-marido participou. Ele perdeu a perna direita em um conflito no Afeganistão. Voltou desolado para casa. Eu queria mostrar para ele que não me importava com a perda física dele. Então eu arranquei-a. - Jesus… - Ele me largou depois disso. Falou que não queria e não suportava pensar que éramos um casal de esquisitos. Ele não se aceitava como esquisito. - Meu Deus... Ele se matou? - Não – falou a mulher misteriosa, e olhou para Musa – eu o matei. Musa engoliu a seco. Conhecia aquela há menos de uma hora e já estava tendo calafrios perto dela. - Foi assim que conheci Jack. – disse A Loira. - Musa... – Antes de Musa perguntar sobre o assunto para a mulher que estava a sua frente, Jack se remexeu e a chamou. - Oi, baby. Estou aqui. - Você... Quem… - Oi Jack. – disse A Loira. - Você... O que você está fazendo aqui? - Salvando sua vida. Tente não fazer muito esforço, por favor. - O que... Quem é… - Bob. John fugiu. Amor, eu sinto muito não ter ido atrás de ti antes. – falou Musa. - O que diabos… - Jack? - Minha perna… A Loira olhou com um olhar triste para Musa. Musa a conhecia apenas por alguns minutos e nunca imaginaria que a mulher poderia mostrar vulnerabilidade, não depois da maneira fria como agiu com os irmãos Bob e John. Em sua pose durona e com olhos vazios e escuros como o céu noturno do inverno, ela não se sentiu reconfortante com o brilho que teimava em transmitir desconfiança e incerteza. E talvez desculpas. - Jack, eu sinto muito. - O que você... Ah, minha perna... Ela... Ah… Uma dor incessante invadiu o corpo inteiro de Jack e o fez chorar. Musa o consolou. - Jack, vamos ter que amputar a perna. - Do que você tá falando? - Jack, ela está comprometida, eu acho que… - Você – olhou fundo nos olhos de Loira – não sabe de absolutamente nada. Eu não vou arrancar minha perna, não agora. Eu tenho que ir atrás de Joel como um… - Aleijado? – completou A Loira com certo receio. - Não... Eu não quis… - Eu sei que foi exatamente isso o que você quis dizer e eu não me importo. Levante e vamos logo. Precisamos falar com o Profeta antes de Joel. Ou pelo menos até que ele esteja ainda vivo. Não temos tempo. Jack foi arrastado pelas duas mulheres até o Mustang de Musa e deitou no banco de trás. Musa sentou no banco do motorista, mas A Loira saiu do carro. - Você não vem com a gente? - Eu vou – respondeu –, mas eu também tenho meu próprio veículo. Vamos. Eu alcanço vocês. Enquanto Musa ligava o carro e se afastava do hotel através da estrada de terra que seguia pelo campo, A Loira ficou observando o lugar onde Bob jazia, agora com uma expressão de dor e com um olhar tão vazio quanto da mulher que o matou. Ela começou a se perguntar se era realmente isso que ela precisava fazer no momento, mesmo que isso doesse para ela. Não saber se o que fazemos é certo ou errado até o momento em que fazemos é realmente uma merda, pensou. Por fim, coletou uma amostra do sangue que Jack perdeu, ainda estava fresco numa poça vermelha e escura, e guardou em um frasco pequeno no bolso de sua calça. Subiu em sua moto e seguiu pelo caminho oposto no qual Musa e Jack já estavam a algumas milhas de distância. - Não enxergo ela. Tenho certeza que ela sumiu misteriosamente, do mesmo jeito que chegou. - Ela... Musa… - O quê? - Não confie nela. Nem sequer tenha compaixão por ela. Ela gosta de mostrar, como cartão de visitas... – Uma onda de dor calou Jack por uns instantes, que voltou a falar, ainda ofegante – ... as coisas pelas quais ela é capaz. Musa olhou para Jack pelo retrovisor. - Musa – terminou ele -, precisamos ter cuidado com ela. O apartamento onde o Profeta morava ficava em um prédio cuja fachada era de tijolos que algum dia no passado foram vermelhos, mas que hoje não eram nada muito mais que um tom rosado sujo e manchado. O bairro era estranho aos olhos de Jack. Parecia organizado e limpo na medida do possível. Via pessoas com rostos comuns passeando com seus cães; mães ou babás empurrando carrinhos de bebês, e pessoas saindo da padaria com um pacote de pão embaixo do braço e segurando um jornal nas mãos. “Isso está errado”, pensou ele, contorcendo-se de dor no banco de trás do Mustang. Jack não tinha como acreditar que o Profeta vivesse em um lugar tão normal. Musa desceu do carro primeiro e o ajudou a descer logo em seguida. Por alguns instantes, eles ficaram ali parados na calçada, ele apoiado no ombro perturbadoramente musculoso dela, observando a fachada daquele prédio monótono. - Você tem certeza que é aqui? – Pergunta Jack, incerto, com a dor na perna turvando a sua visão. - Claro – Respondeu Musa sem pestanejar – Eu sei, eu sei... a primeira vez que eu vim falar com o Profeta também fiquei meio desconfiada. Pelo que tinha ouvido falar dele, achei que morasse no beco mais nojento dessa cidade. Uma brisa fresca soprava do sul e amainava o calor do sol que já estava a pino naquele momento. Entre o zumbido leve do vento e o farfalhar das folhas arrastadas por ele, Jack ouviu o ronco de uma moto se aproximando. Ele e Musa olham para trás e veem a Loira parando a moto, trazendo um homem consigo na garupa. Jack não conseguia enxergar direito por causa da dor, mas reparou que era um sujeito alto aquele, não muito forte, com um rosto estranho e a barba por fazer. Na cabeça tinha um boné que daquela distância parecia ser do Boston Red Sox, usava a camiseta de um frigorífico e nas costas trazia uma mochila preta. Jack não gostou disso. E sentiu que Musa também não quando ela respirou pesadamente ao seu lado. A Loira desceu da moto assim que o sujeito do boné de beisebol pulou da garupa. Os dois se aproximaram de Jack e Musa com uma expressão fria no rosto. - E quem é esse?– Quis saber Musa. - Um amigo – Respondeu ela, com calma – Ele vai nos ajudar. - Eu não gosto nada disso – Musa parecia realmente tensa agora – Não é certo envolvermos mais gente nessa história. - Ele é metido em histórias muito piores que essa – Garantiu a Loira, com um meio sorriso que de malicioso não tinha nada. - Qual o seu... o seu... nome? – Gaguejou Jack, querendo falar e se manter lúcido. - González – Respondeu ele secamente. Ele tinha uma voz pesada, e seus olhos eram de um castanho absolutamente genérico. “Ou eu estou delirando, ou esse sujeito não tem a menor cara de latino”, ponderou Jack. “Mas é fã dos Red Soxs mesmo”. Mas isso não era importante agora. Precisavam falar com o Profeta o mais rápido possível. O prédio não tinha porteiro. Na verdade, a portaria não era nada mais do que apenas uma porta de ir-e-vir de vidro fosco e sujo, que levava a um pequeno átrio retangular e vazio, com o chão aparentemente limpo, apesar de uma ou outra folha solta de jornal rolar pelos cantos. A escadaria parecia escura, mas em alguns lugares havia lâmpadas que davam alguma claridade. Jack ficou entre González e Musa, apoiado em seus ombros. E assim eles começaram a lenta subida das escadarias. Mesmo não apoiando a perna machucada no chão, cada passo era um tormento para Jack. A dor subia em ondas que faziam seu corpo inteiro tremer. A bile subia de sua garganta com cada vez mais intensidade, e ele sabia que não tardaria em pôr tudo para fora. A Loira vinha atrás deles. Subia indolentemente, batendo com os pés nos degraus com ligeira força, que fazia um pequeno eco vibrar pelo ar. Jack olhou de relance para trás e conseguiu visualizar apenas o balanço que ela fazia a cada passo, por causa da perna mecânica. Por um instante ele pensou também ter visto um sorriso demente naqueles lábios finos e vermelhos. “Errado... tão errado... vai... vai... terminar mal....” Ele se perdeu em devaneios enquanto o grupo dava voltas e voltas escadaria acima. Tudo voltou a sua mente. A Loira acabando sem piedade de Bob e John, todo aquele sangue espalhado pelo quarto do hotel vagabundo, os gritos, o terror, a agonia da dor. A figura insana de Joel se desenhava diante de seus olhos, com feições distorcidas, gargalhando e apontando uma faca no seu pescoço. A Morte, chegando tão perto, com seu hálito frio e olhos profundos. Quando voltou a si os quatro estavam em um corredor, não muito longo nem muito curto, onde de ambos os lados se enfileiravam várias portas idênticas umas às outras. - É no fim do corredor, último apartamento à esquerda – Disse Musa. Foi um trajeto rápido, mas que para Jack pareceu levar uma eternidade. Ele não sentia mais a perna, apenas a dor. Era como se uma força pulsasse naquele espaço, sem parar, bombeando espasmos de dor incessantemente. A porta do Profeta era absolutamente comum. Musa deu três batidas rápidas, nervosas. Não houve resposta. Outras três batidas, mais fortes. Ouviu-se um barulho no lado de dentro, que aos ouvidos de Jack pareceu ser de plástico sendo enrolado. - Só um minuto – Soou uma voz rouca do outro lado da porta. Jack conseguia ouvir também um bocado de xingamentos abafados de outra pessoa. “O tal do Cleyson” supôs, já impaciente. Cresceu uma pequena tensão entre eles, que só se desfez quando ouviram o ruído de várias fechaduras sendo destrancadas do outro lado. A porta se abriu, mas Jack não conseguiu ver alguém dentro do apartamento. - Entrem – Ordenou a mesma voz rouca – Rápido. Jack soltou o ombro de Musa e se apoiou apenas em González para conseguirem passar pela porta. Logo atrás deles vieram Musa e a Loira. O apartamento não era muito grande, com poucos móveis. E estava todo coberto por plástico. “Não era barulho de plástico sendo enrolado”, deu-se conta Jack. “Era barulho de plástico sendo desenrolado”. Um calafrio percorreu sua espinha e por pouco não caiu no chão. González o deixou cair sentado em uma poltrona, igualmente coberta de plástico. - Profeta – Começou Musa, com ansiedade – É sobre o Joel. - Ah, obviamente – Respondeu o homem de rosto ressecado, nariz longo e olhos de um verde pálido quase sem vida – Eu vi esse dia chegando. Fizeram bem em ligar antes de virem. Deu tempo de arrumar tudo aqui. - Como assim? – Perguntou Musa, confusa – Quem ligou pra você? - Eu – Respondeu a Loira, que estava escorada na parede ao lado de uma janela, observando a rua lá embaixo e fumando um cigarro – Um certo serviço sujo ainda precisa ser feito, Musa. - Nós viemos aqui falar com o Profeta pra tentarmos sair dessa encrenca dos infernos! – Berrou Musa, com uma voz tão grossa que fez Gonzáles arquear as sobrancelhas – Parece que você quer nos meter em uma maior ainda! - Não. Esse é o primeiro passo pra sairmos dela. Eu não me importaria, mas acho que você não vai gostar de mais um corpo nessa história toda. - Mas aqui não é lugar! Jack precisa de um hospital! - E o que você pretende contar pros médicos? Vai contar nossa aventura com Bob e John? Conheço você há pouco tempo, Musa, mas já sei que você não sabe mentir. Dessa vez Musa não respondeu. Com os poucos instantes de descanso, Jack conseguiu clarear um pouco os pensamentos. Ele já entendeu que amputariam sua perna, mas estava cansado e com dor demais para entrar em desespero. Por sua mente passou um rápido pensamento de que talvez fosse melhor que desse errado e ele acabasse morto. - Bom... como vai ser então? – Quis saber Musa, ainda receosa – O Profeta é médico e eu não sabia disso? - Não tenho nada a ver com isso – Respondeu serenamente o velho – Apenas permiti que fizessem aqui. Meu dever é ajudá-los como prosseguir depois de feito a.... cirurgia. - Puta que pariu – Disse Musa, quase como um rosnado – Quem vai fazer essa porcaria então? - Eu disse que o González veio nos ajudar – Respondeu a Loira, atirando a bituca do cigarro pela janela e vindo para o meio da sala com uma expressão de prazer no rosto – Abram espaço, tragam uma mesa e deitem o Jack em cima. Enquanto Musa e Cleyson buscavam uma mesa, e o Profeta ficava em outro canto, apenas olhando para eles com um olhar sombrio, González tirou a mochila das costas e a colocou no chão, a abriu e puxou para fora um rabicho, e saiu procurando por uma tomada. Jack, ainda sentado na poltrona, achou aquilo estranho e idiota. Era óbvio que ele tinha uma serra de amputação na mochila, para que infernos aquele suspense? - Isso não é perigoso do mesmo jeito? – Questionou mais uma vez Musa, quando ela e Cleyson colocaram a mesa no centro da sala – Isso aqui não parece exatamente o lugar mais limpo do mundo. O corte do Jack pode infeccionar e ele morre do mesmo jeito. - Não se preocupe – Garantiu a Loira – O González sabe o que fazer. González achou uma tomada e plugou o rabicho. Colocaram Jack sobre a mesa, cortaram com uma tesoura o que sobrava da perna da calça e deixaram o ferimento à mostra. Estava começando a ficar preto. - Você tem alguma anestesia? – Perguntou Cleyson, com sua cara de porco. - Não – Respondeu González, mexendo dentro da mochila. - Você... você.... – Jack gaguejava e não conseguia falar direito – É um... um médico que perdeu... perdeu a licença... ou coisa assim? - Não – Disse mais uma vez González – Na verdade eu sou pedreiro. Mas já fui açougueiro. Então tirou de dentro da mochila uma serra elétrica circular e a cravou na perna quase morta de Jack. O primeiro instinto de Jack, é claro, foi urrar de dor enquanto seu sangue jorrava em todos que estavam suficientemente próximos ao redor da operação amadora que tinha tudo para ser terrivelmente mal executada e dar errado. Não demorou para que Jack desmaiasse. Do ponto de vista dele, demorou uma eternidade. Todos os presentes ficaram bastante impressionados em maior ou menor escala. Musa precisou se apoiar na parede mais próxima para evitar desmaiar, mas os pontos pretos ainda invadiam seu campo de visão. Loira não se deixou abalar pela visão de todo o líquido mágico da vida se espalhando pela sala. Confiava nas habilidades médicas de González, coisa que não deveria ter feito. Profeta, desde o começo, não fora muito fã da ideia, mas estava ciente de que restavam poucas opções, e o fato de que uma delas era serrar a seco a perna daquela pobre alma o pegou de surpresa. - Não devíamos... fazer um torniquete? - Cleyson perguntou assim que a serra fora desligada, olhando ao redor para analisar como os outros presentes aceitariam sua sugestão. A princípio, todos deram a entender que sequer haviam prestado atenção em Cleyson. Em seguida, Loira correu até a mochila de González, de onde viera a serra, para pegar qualquer coisa comprida e fina para o torniquete, optando por uma chave de fenda, enquanto González amarrava um pedaço da calça de Jack para amarrar no que restara de sua coxa, com a intenção de parar o sangramento. Enquanto González e Loira faziam o torniquete, Profeta se aproximou de Jack e o observou com interesse por alguns segundos, constatando calmamente: - Ele está pálido demais. - Colocou a mão no rosto de Jack para medir a temperatura, crispando os lábios logo após. - E mais frio do que pessoas vivas normalmente ficam. Os dois que haviam se responsabilizado por estancar o sangue pareciam sequer ouvir o que Profeta havia dito, mas Musa e Cleyson ficaram visivelmente abalados com a informação. - Precisamos levá-lo a um hospital! – Musa declarou em voz alta, constatando o óbvio. – Ou ele vai acabar morrendo. – Constatou a segunda coisa óbvia daquela noite. - Você sabe que não podemos. – Disse Profeta, se sentando na cadeira mais próxima, repassando toda a experiência médica nula que tivera, e nos programas sobre sobrevivência e casos médicos bizarros atrás de alguma boa ideia para salvar o pobre rapaz. Sem carro, sem experiência médica e isolados da civilização ficaria quase impossível salvar Jack. A ideia mais sã naquele momento pareceu matá-lo enquanto ele estava pacificamente inconsciente. Musa decidiu não contestar, pois também não tinha em mente qualquer plano milagroso para salvá-lo. A operação poderia ter sido feita da forma correta, sem toda a carnificina, e Jack teria alguma chance de sobreviver se não pegasse uma infecção, ou seria bastante improvável naquele ambiente não esterilizado. Cleyson retirou o casaco e o usou para cobrir Jack. Nunca gostara daquela peça e, caso Jack morresse com ela, teria uma desculpa para nunca mais usá-la. Quando se virou para o lado, Cleyson ficou aterrorizado ao ver um maçarico na mão de González, e se perguntou como tantas coisas letais poderiam caber numa só mochila. - Precisamos cauterizar agora. - Ficou maluco? – Cleyson estava visivelmente alterado, possivelmente horrorizado com a possibilidade de sentir o cheiro de carne queimada pouco antes da hora do jantar. – Precisamos cauterizar sua cara! - A ferida vai infeccionar se não fizermos nada, Cleyson. – Loira disse com firmeza, obviamente achando que fora uma grande ideia de González. - Ele vai morrer de qualquer jeito. – A voz, vinda do outro lado do cômodo, vinha em tom baixo, saída da boca do Profeta. Todos ali foram pegos desprevenidos pela verdade que estava diante de seus olhos. – Vamos matá-lo. Assim pelo menos o poupamos do sofrimento. O ar ficara repentinamente denso e eles não ousavam se entreolhar. Todos eles sentiam uma imensa vontade de contestar tal ideia, que se obrigavam a julgar maluca, mas parecia a coisa mais sensata desde o começo da história. Musa estava estarrecida, repassando todos os acontecimentos do dia para descobrir como se metera naquela maluquice. Cleyson não queria ser o primeiro a dizer em voz alta, mas estava de acordo com tal ideia. Sabia desde que vira a serra na mão de González que Jack não sobreviveria. A questão agora era— - E quem vai matá-lo? Todos se entreolharam e recuaram um passo ou se encolheram em algum canto, menos o Profeta, mas ele certamente não se disporia a sujar as mãos com tal trabalho. - Podemos simplesmente deixar ele morrer. Vai acontecer cedo ou tarde... - Loira parecia bastante distraída com algumas mechas de seu cabelo. Ela evitava olhar os outros agora que realizara quão ruim fora a ideia de amputar a perna de Jack. - Eu posso fazer isso. - Acho que ele merece coisa melhor que um açougueiro de quinta, González. - A irritação era clara na voz de Cleyson. Nunca teria adivinhado que González mostraria ter um sangue tão frio para com colegas de equipe, ou seja lá o que fosse que Jack costumava ser. - Então você devia fazer isso. - Foi Loira quem deu esta sugestão. Musa e Profeta menearam a cabeça em sinal afirmativo. Para Cleyson, é claro, aquela ideia era péssima. Mas se não fosse ele, quem seria? Não achava justo que o responsável pela morte de Jack fosse González nem Loira, e Musa desmaiaria só de pensar em cometer tal atrocidade. O Profeta também não aceitaria o trabalho, então a única solução justa seria que ele mesmo concluísse aquilo, ou que deixassem Jack morrer por conta própria. Não faltava muito para que a falta de sangue o matasse, de qualquer forma. González levou até Cleyson uma arma, que provavelmente viera de sua mochila mágica que trazia todas as coisas proibidas e letais do mundo. Cleyson a pegou com mãos trêmulas, engolindo em seco e buscando coragem dentro de si. Seria possível que quando a história chegasse aos ouvidos da polícia, todos os presentes colocassem Cleyson como o único culpado, o bode expiatório. Mas essa história nunca chegaria aos ouvidos deles – ao menos não nos da polícia tradicional – pois algo completamente bizarro aconteceu antes que Cleyson puxasse o gatilho. Todos tiveram o impulso de se entreolharem estarrecidos repentinamente, mas havia algo de diferente. Alguma coisa tinha mudado, todos podiam sentir, mas nenhum deles sabia dizer o que era. Por isso, olharam um para o outro, confusos, tentando entender o que tinha acontecido. –Puta merda. – disse Cleyson. –Que diabos! – Exclamou Gonzáles, enquanto pegava a segunda perna que Jack perdia aquele dia. Do nada, sem que ninguém fizesse algo, a perna de Jack simplesmente caiu. Era como se tivesse sido cortada cirurgicamente. O chão estava ficando cada vez mais ensanguentado. –Está começando. – Disse o Profeta. Foi quando os dois braços de Jack caíram no chão. –Atire! Atire logo! Mas Cleyson não conseguiu obedecer ao Profeta. Estava paralisado, como se tivesse perdido o controle de seu próprio corpo. A Musa veio logo em sua direção, pegou a arma de sua mão e começou a atirar. O corpo de Jack – ao menos o que restava dele – começou a pular enquanto era atingido. A Musa apenas continuava atirando. Os projéteis da poderosa arma penetravam a carne e faziam jorrar sangue para todos os lados. A velocidade de disparo era assustadora. Restos de pele e de músculos caíam por cima dos presentes. Tick, tick. Acabaram as balas. –Pronto. – Disse a Musa, deixando a arma cair. –Tinha necessidade disso? – A voz da Loira soava apavorada – Você podia ter atirado apenas uma vez! Todos estavam assustados e Cleyson foi o único que viu o que aconteceu em seguida. –Eu queria garantir. Os restos de Jack estavam tremendo e a carne em suas feridas parecia borbulhar. –Ele era nosso amigo! –Pessoal, – interrompeu Cleyson – tem algo de errado! As feridas das balas haviam se fechado e a pele regenerado – exceto os cortes dos braços e pernas – e pelos negros cresciam em todo o corpo. Gonzáles se aproximou para ver melhor. –Profeta, porra, o que é isso? Porém, antes que pudesse ouvir uma resposta, Jack levantou a cabeça e cuspiu algo. Uma gosma branca, semelhante a uma teia, cobriu o rosto de Gonzáles e o puxou para perto de Jack. Dois membros longos, como braços sem mãos, saíram de cada buraco onde antes ficavam seus braços e seguraram Gonzáles. Jack abriu a boca e começou a comer o antigo parceiro. Foi quando sua orelha explodiu. A Loira havia corrido até a mochila e pegado outra arma, mas sua pontaria não era das melhores. Gonzáles correu até ela, pegou duas pistolas, jogou uma para a Musa e os três começaram a atirar. –Não adianta! – O Profeta estava certo. A gigantesca aranha humanóide não apenas parecia nem sequer sentir os tiros que recebia, como agora criava pernas, dois membros no lugar onde antes ficava um, semelhante ao que acontecera com os braços. Tudo isso sem parar de comer Gonzáles. – Temos que sair daqui! Saíram daquele lugar. Seguiram pelo corredor, correndo, sem olhar para trás, até chegarem a um local aberto. Cleyson disse: –Eu reconheço este lugar… –Sim, – respondeu o Profeta – E eu sei como ir à biblioteca a partir daqui. Cuidem daquela coisa, eu já volto. –Mas, – disse a Loira – você vai sozinho? –Ele disse que já volta. – Respondeu a Musa. –Eu vou com você. É perigoso. – Disse a Loira. –E você acha que irá protegê-lo? – Falou Cleyson. –Melhor do que nada. –Certo. – Disse o Profeta. – Venha comigo, mas tome cuidado. –Mas e nós? – Perguntou a Musa. –Fiquem aqui e impeçam Jack de entrar no caminho da biblioteca. –Como faremos isso? – Disse Cleyson. Profeta pegou a mochila e retirou duas espingardas. –Usem isso. Irá atrasá-lo o suficiente. Cleyson e a Musa ficaram sozinhos com as armas em punho e carregadas. Foi quando viram Jack correndo. Mas não estava sozinho, Gonzáles vinha junto. Os dois estavam transformados em terríveis aranhas humanóides. Cleyson atirou – a arma que ganharam era silenciosa e não dava nenhum soco no atirador, mas era extremamente poderosa mesmo assim – no peito de Gonzáles, que caiu para trás com um grito de dor. –Toma essa, inseto filho da puta. Musa atingiu rapidamente Jack duas vezes – uma no peito e outra na cara. Seu rosto ficou ainda mais deformado. –Não são insetos! Gonzáles se levantou e correu em direção aos dois. Jack apenas ficou tonto por alguns instantes, grunhindo. Cleyson atirou nas pernas de Gonzáles, que cairia de joelhos, se ainda os tivesse, mas foi direto de cara ao chão. –Como assim? Claro que são! Musa correu até a criatura deitada, pressionou a arma direto em suas costas e atirou três vezes. Gonzáles parou de se mexer. –São animais. Insetos têm seis patas. Cleyson correu até Jack, que se preparava para acertar Musa, e atirou várias vezes na barriga do monstro enquanto se aproximava. –Mas aranhas têm oito patas. Animais não têm apenas duas ou quatro? Musa ergueu sua arma e atirou no peito de Jack, que já estava atordoado e caiu de costas no piso do local. – Duas, quatro, ou oito. Eu acho. Eu só sei que insetos têm seis patas. Cleyson se aproximou da criatura, encaixou a espingarda em sua boca e descarregou toda a munição restante, destruindo a cabeça dele e, aparentemente, matando-o. –E as esponjas? –Que esponjas? –Aquelas do mar. Elas não têm patas. Mas elas não são animais? –Não, ué, são vegetais. Porém, a conversa foi interrompida pela voz do Profeta que ecoou dentro da cabeça dos dois. “Consegui achar um livro que contém o feitiço que precisamos.” –Wow. – Disse a Musa. – Que coisa bizarra. Cleyson sorriu, já estava acostumado com isso. “A Loira ficou cuidando do caminho para mim, acredito que estamos seguros agora. Espero que vocês estejam bem. Lembrem-se, é de suma importância que não deixem essa criatura se aproximar da biblioteca! Agora, eu preciso que vo-“ Mas a mensagem foi interrompida do nada. –O que houve? – Perguntou a Musa. –Não sei, nunca tinha visto isso acontecer... – Respondeu Cleyson. –E agora, o que faremos? Cleyson notou, então, que a Musa estava perdida. Cabia a ele decidir. Aquela sensação era horrível, Cleyson se viu obrigado a decidir como agir sem a menor ideia do que fazer. Parece até que o filho da puta me deixou meia palavra de propósito. Tentava lembrar como as coisas tinham chegado naquele ponto, mas era difícil. Não fazia sentido algum. Toda a sua história era completamente absurda. Mas sabia que seria assim quando aceitou participar. E agora precisava fazer algo. –Vamos atrás dele. – Decidiu Cleyson. –Tem certeza? – Perguntou Musa. –Não. Seguiram em silêncio por um corredor que lembrava aquele por onde vieram. Após longos minutos caminhando, viram um vulto em frente. –Oi? – Falou Cleyson. –Silêncio! – Falou a Musa. – E se for um deles? –Como? Os dois ficaram lá atrás. Aproximaram-se lentamente. A pessoa estava de costas para eles, escondida nas trevas. –Oi? – Repetiu Cleyson. Foi quando ela se virou e os dois puderam ver que era a Loira. Mas não era mais a mesma. –Puta merda, – gritou a Musa – ela foi transformada também! Ela pegou sua espingarda e puxou o gatilho, tick, mas não tinha mais balas. –Diabos, como eles a pegaram? Os dois começaram a recuar, lentamente, sem tirar os olhos da Loira, que ainda não havia caminhado em sua direção. Sabiam que não tinham condições de correr mais do que uma daquelas criaturas. –Eu não sei, – respondeu Cleyson – mas ela havia ido junto com o Profeta procurar a biblioteca depois que nossos amigos foram transformados em demônios. Ele mandou uma mensagem mágica avisando que a deixou cuidando do caminho e que já havia encontrado o feitiço, mas algo cortou o contato antes que pudesse terminar de falar. –Eu sei, ué. – Falou a Musa – Por que você está me contando essas coisas? –Porque são informações importantes para entender a situação. – Respondeu. – E eu sinto que nosso tempo está acabando… Foi quando ouviram um barulho vindo de trás. Ao se virarem, viram Jack e Gonzáles. A Loira, então, começou a se aproximar. Cleyson e a Musa ficaram parados, cercados pelos aracnídeos que se aproximavam dos dois lados. Duzentos anos no futuro. - Estamos recebendo uma perturbação no setor BF-Alfa-0912-K-1279352, senhor. Capitão Calypso suspirou, cansado. Aquele maldito setor. Olhou para as estrelas por alguns momentos e então disse: - Estão tentando matar Hitler... de novo. - Sim, senhor, eles não cansam - respondeu o soldado que monitorava as linhas temporais. - De todos os lugares para ir, todas as coisas para fazer, eles têm que escolher logo Hitler. Isso é tão ficção científica do século XX. Por que, só para variar, os malditos não escolhem matar Mao Tsé-Tung, Alexandre, o Grande ou, diabos, algum papa? É sempre o Hitler! Isso não te irrita, Fred? - Na verdade, eu só tento fazer o meu trabalho, senhor. - Queria ter esse saco. Ah, cara, não vejo a hora de me aposentar e mandar esses caras do governo se virarem sozinho quando alguém quiser matar algum genocida alemão. Aliás, eu acho que após a gente impedir esses caras, vou eu mesmo matar o infeliz. Sabe... eu me sinto mal salvando tantas vezes a vida de alguém tão ruim. Você não questiona a moralidade do seu trabalho, cadete? - Eu só trabalho, senhor. - Você é feliz e não sabe. Duzentos anos no passado. Joel e o Profeta estavam reunidos no funeral de seus amigos. As coisas tinham ido ladeira abaixo nos últimos dias. Aqueles que não foram transformados em aranhas monstruosas acabaram sendo comido por elas ou presos por estupro. Profeta estava especialmente abatido. Ele não deixava de imaginar que se tivesse chegado um pouco mais cedo, teria conseguido curar os companheiros antes do massacre. Seu único companheiro vivo, por outro lado, não parecia muito preocupado. Ele brincava com uma folha seca usando os pés. Após parar, falou: - Eu sei o que você está pensando. - Ah, é? Pode ler pensamentos agora? - Nah, mas seria esperado que fôssemos todos grandes amigos e que eu estivesse em prantos por ter perdido tantos companheiros, não? Afinal, éramos amigos há tanto tempo. O Profeta ficou calado. Aquela frase ecoava em sua cabeça: “éramos amigos há tempo”. Será? Tinha a impressão de que conhecia algumas daquelas pessoas há bastante tempo, porém, também sentia como se sua relação com elas fosse muito forçada e artificial. Ao não receber resposta, seu companheiro de luto voltou a falar: - O problema é que nós não éramos amigos. Eu não conheço nem você há muito tempo, Profeta. Sabe, eu comecei a pensar nisso ontem de noite. Estava com insônia, tendo sonhos estranhos, sonhos de outras vidas. Em uma delas, eu não conhecia nenhum de vocês. Eu... fugi de casa, sabe? Não consigo lembrar o motivo, mas eu queria uma vida de aventuras. Algo diferente. Consegui várias. - olhou sério para seu amigo - Alguém está mudando a nossa vida. Duzentos anos no futuro. - E então, senhor? Como foi a missão? - Ah, moleza. Dessa vez o Hitler me agradeceu pessoalmente. Sabe, é difícil continuar escondido após salvar tantas vezes a vida dele. Ele acha que eu faço parte do exército, ou sei lá. Só espero não começar a aparecer nos livros de história. - Senhor, tivemos outra perturbação. Mais de uma, na verdade. Dessa vez é sério. - E eu sou a única pessoa que trabalha aqui? Acabei de voltar. Chama outro. - Bem, a Alta Cúpula decidiu colocar você no trabalho, porque... bem, essa é uma das grandes. Maior do que qualquer tentativa de assassinato na Alemanha nazista. - Me passe os detalhes imediatamente. Duzentos anos antes. - Eu não faço barganhas - disse a Morte. - Mas... eu dou a minha vida em troca da deles. - Muito menos barganhas ruins! Você acha que a sua vida vale alguma coisa, humano miserável? Eu entendo a sua culpa, mas não reclame comigo. O Profeta ficou calado. Estava quase virando de costas e desistindo, quando foi chamado: - Porém, eu posso fazer uma coisa por você. Mas você, meu amigo, deve fazer algo por mim. Algumas horas depois, Joel acordou em seu quarto. O lugar era luxuoso. Havia uma cama enorme e muito espaço. Ele conseguia sentir que o dia anterior havia sido muito importante, mas só lembrava de ter ido ao funeral dos amigos e conversado brevemente com o Profeta. Levantou da cama, tomou banho, escovou os dentes e decidiu sair. Inicialmente, não lembrava porque estava naquele hotel, mas logo lembrou que havia achado um bilhete premiado na rua e, por isso, estava esbanjando. A luz do sol estava mais reluzente que o de costume naquele dia e foi agradável caminhar até o shopping para o encontro com o último de seus companheiros naquela cidade. Ele já estava na mesa do restaurante quando Joel chegou. - Bom dia, Joel. - E aê, Profeta. Beleza? Os dois conversaram brevemente. O velho parecia estar tenso, sempre olhando para os lados, como se alguém estivesse os seguindo. Quando foi indagado sobre a sua paranoia, só disse que estava com medo após os amigos terem sido transformados em aranhas. Após alguns minutos, ele parou de conversar sobre amenidades e decidiu abrir o jogo: a Morte havia tentado contratá-lo para matar Joel em troca da vida de todos que morreram nos últimos dias. Ele não havia aceitado, porém, temia que a entidade viesse buscar a vida dele ela mesma. Enquanto a conversa ainda ocorria, a porta do banheiro abriu e lá de dentro saiu um homem alto e loiro, vestido com um terno azul. Ele tirou uma pistola do bolso e começou a atirar nos dois que, suspeitando que aquilo fosse uma artimanha da Morte, decidiram correr. A perseguição do homem era implacável. Ele correu atrás deles por cerca de quinze minutos, do shopping até um beco sem saída, que Joel jurou para o Profeta que era um atalho. Encurralados, eles só tiveram tempo de implorar por suas vidas antes do primeiro e último tiro. O Profeta caiu no chão, morto. Joel foi levado pelo homem por uma das portas de um prédio ao lado e, sem saber como, se viu dentro de uma grande construção de metal, que parecia estar no espaço. Ele foi jogado dentro de uma cela, onde ficou por dias. A comida vinha em pílulas, e várias pessoas com roupas estranhas e coloridas iam fazer testes com ele. Após um tempo indeterminado, o sequestrador voltou e levou o refém até uma sala de cirurgia. Ele foi sedado e recebeu algum tipo de intervenção cirúrgica contra a sua vontade. Acordou dentro de um ônibus, ao lado de uma garota ruiva. Lembrou que ela se chamava Musa, que era uma transexual e que tinha um Mustang, e também que ela havia apontado uma arma para a cabeça dele uma vez. Porém, nada daquilo parecia real ao vê-la dormir naquele ônibus, e ele foi tendo certeza de que nunca havia realmente visto ela antes. Desceu na rodoviária seguinte e pegou um ônibus de volta para casa. Estava com saudade da sua vida. Após aquele estranho sonho, viajar sozinho não parecia mais tão legal assim. Ao chegar, foi recebido com alegria pela família. Era bom estar de novo em casa. Duzentos anos no futuro. - Por que essa cara triste, senhor? - Você não acreditaria na quantidade de vidas que eu acabei de restaurar nesse último caso, tudo poderia ter dado tão errado se eu tivesse vacilado por um momento sequer... - O dos homens que queriam impedir o presidente Obama de ser eleito? - Não, o do rapaz que tinha uma ruptura temporal dentro de si. Não sei como conseguimos ignorá-lo por tanto tempo. Ele afetou centenas de vidas e por pouco que não destruiu toda a nossa sociedade. Os chefões falaram que até a Morte estava atrás dele. Bem, o que importa é que a cirurgia deu certo e ele está consertado. - Ele ainda pode ser perigoso? - Não, mas acredito que é bom continuar a monitorá-lo. Boa noite, Fred. - Boa noite, senhor.












[Projeto Corpo Estranho 2] Capítulo 1: Joel estava esperando o ônibus. Queria mudar de vida, sair daquela cidade e deixar todos os seus problemas para trás. Em sua mochila, somente roupas e provisões necessárias para alguns dias andando por aí, além de algumas centenas de reais, todas as suas economias. Estava prestes a dar um passo gigante em sua vida, tomar uma decisão da qual nunca poderia voltar atrás. Respirou fundo. Levantou do banco e entrou no ônibus. Lá dentro, sentou ao lado de uma garota ruiva que estava dormindo com a cabeça encostada na janela. Pegou o celular e entrou no Facebook. Nenhuma atualização. Decidiu escrever o seu post. Apostou que todos os seus amigos achariam que ele suicidou-se depois do que escreveu. Foi uma mensagem melancólica e cheia de despedidas, agradecendo a todos por terem sido uns filhos da puta. Na verdade, eles nem tinham tido muita influência na sua decisão de fugir, ele só queria zoar com eles. Divertia-lhe bastante a ideia de deixar todos os preocupados (principalmente os seus pais, eles mereciam mais do que todos) e ir explorar o mundo. Após fazer isso, jogou o seu celular pela janela. Não precisava mais dele. A viagem durou horas. Ele passou por diversas paisagens: pradarias vastas, cujo fim era impossível se ver de dentro do ônibus, rios, cidades, vilarejos e, ao anoitecer, enxergou o mar ao longe. Nunca havia visto o oceano pessoalmente, e naquele momento, vendo o pôr do sol, decidiu que era ali que queria ficar. Levantou, assustando a garota ao lado, e foi até o motorista. “Pare o ônibus”, gritou, “eu preciso descer!”. O homem o fez, e ele desceu correndo, com a mochila nas costas. Não ligava para o que pensariam dele, só sabia que seria feliz naquele novo lugar. Infelizmente, assim como o sol vai embora, a animação de Joel também foi. A praia era deserta e não havia como viver ali, a não ser que ele bebesse água salgada, comesse caranguejos e dormisse na areia. Passou a noite com fome e um pouco decepcionado, após ter caminhado por quilômetros, sem achar nenhum lugar em especial. Mas assim como o sol volta na manhã, a esperança voltou. Três homens olhavam o garoto com curiosidade quando ele acordou. Apresentaram-se como Bob, Jack e John, os três irmãos viajantes. O objetivo de vida deles era conhecer todo o mundo, andando por aí em uma carroça puxada por dois cavalos. Assim como Joel, eles eram novatos, haviam saído de casa há poucos dias. Juntos, os quatro andaram por vários lugares conhecendo as maravilhas do país. Um mês se passou e os três chegaram à cidade de Nova Utopia. Era um lugar magnífico, onde tudo funcionava bem e todos eram felizes. Todas as pessoas tinham um sorriso no rosto enquanto andavam pela rua e os cachorros andavam sempre balançando o rabo. Os irmãos viajantes se decepcionaram com toda a felicidade do lugar. Segundo eles, não havia graça nenhuma em um lugar onde tudo desse certo, e eles acharam necessário continuar sua jornada, buscando locais que fossem realmente divertidos. Joel, por outro lado, estava com saudade da estabilidade trazida pelo lugar, que parecia um bom lugar para se recomeçar. Ele conseguiu um emprego como carteiro na cidade e logo sentiu a felicidade que inundava o ar. Era quase mágico, como se todas as pessoas se sentissem melhor por simplesmente andar pelo lugar. Ele gostava do emprego, os dias passavam rápidos e sempre era bem recebido pelas pessoas. Mas tudo que é bom tem um fim, e o fim da carreira de Joel como carteiro em Nova Utopia chegou na forma de um profeta. “Saiam dessa cidade enquanto podem”, disse, “algo terrível está para acontecer, tão terrível que irá mexer com o tempo e o espaço, alterando a continuidade das coisas para todo o sempre”. Nenhum dos habitantes da cidade levou aquilo a sério. Afinal, eles viviam felizes e nada de ruim jamais lhes aconteceu, então por que isso haveria de mudar? Apesar de estar desconfiado, Joel decidiu continuar morando na cidade, e por dois dias, nada aconteceu, até que a tempestade veio.
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Todos em Nova Utopia acordaram de mau humor. Como mágica, tudo começou, e assim, tudo terminou. Uma tempestade fazia os céus ficarem negros, e raios ameaçavam cair sobre a cabeça de qualquer um que saísse de casa. Chegando ao correio, Joel foi demitido. “Vá para a puta que pariu” foi a explicação de seu chefe. Algo estava errado. Ele ficou vagando triste pela cidade tentando entender o que havia acontecido. Até o dia anterior, todos eram felizes e todos os dias eram ensolarados. Até mesmo os dias de chuva eram ensolarados, se é que isso é possível, e em tão pouco tempo, aquela tempestade tomava os céus, e o humor de todos estava péssimo. A utopia de Nova Utopia havia acabado. A dor do fim prematuro da carreira de carteiro fez o jovem perder toda a esperança que havia adquirido quando chegou à cidade. Chateado, decidiu andar na chuva, esperando que algum tipo de revelação divina lhe mostrasse o caminho certo. Enquanto andava, lembrava das palavras do Profeta. No meio da tempestade, uma voz chamou a atenção de Joel. Ele olhou para o lado e viu a moça ruiva do ônibus. Ela parecia irritada e falava com um homem, que gesticulava muito com as mãos. Aproximou-se e falou com ela: “Você é a moça ruiva do ônibus!” Ela olhou para ele, e demorou um minuto para reconhecê-lo, então sacou uma pistola e disse: “E você vai morrer” Assustado, o ex-carteiro vacilou e caiu no chão. Ainda tinha tanto para fazer em sua vida, não poderia ser morto por uma garota em meio a uma tempestade. Nesta hora, o Profeta apareceu e se colocou entre os dois. “Você pode sobreviver, Joel.” “Mas como?” “Você deve seguir até o Monte Realmente Alto E Muitíssimo Difícil De Se Achar e pegar a Gema Incrivelmente Bonita E Poderosa Que Pode Salvar O Mundo.” “Mas, eu... eu não sou nenhum tipo de herói!” “Agora você é, moleque, e sua jornada começou, some daqui.” Com lágrimas no rosto, Joel saiu correndo. Não fazia ideia do que estava acontecendo e nem de como conseguiria salvar o mundo, se é que faria isso. Capítulo 2: Após quinze minutos em meio a chuva e vento gelado, Joel finalmente percebeu que não era mais necessário correr. Tentou, inutilmente, reconhecer o lugar, porém o medo não permitiu que prestasse atenção nas ruas em que passava. "Ótimo! Como se já não bastasse todas as loucuras desse dia, agora não faço ideia de onde estou". "Como assim, querido?" - uma voz trêmula e muito baixinha parecia sussurrar nos ouvidos do ex-carteiro, que agora adicionara mais um nível frio em sua espinha. Olhou para os lados e descobriu que estava alucinando, pelo menos torcia para que fosse isso. "Oi? Estou falando com você, querido" "É claro que é o meu cérebro brincando comigo. Só pode! Eu estou faz horas correndo na chuva e sem comer. Isso é um problema, certo?" "Ei, olhe para baixo". Joel seguiu o conselho e olhou para o chão esburacado da calçada, encontrando uma poça cristalina com um reflexo avermelhado, mas não conseguia enxergar direito o que era. Esfregou os olhos e viu o que temia: a Moça Ruiva. Ela sorria, mostrando seus dentes brancos e perfeitamente alinhados e os lábios vermelhos como sangue. O ex-carteiro rapidamente levantou a cabeça, conferiu todos os lados do beco e não a localizou. Ela continuava apenas um reflexo na água. Então Joel fez a única coisa que a sua mente conseguiu pensar no momento: espalhar o conteúdo da poça. Não demorou muito tempo para ele concluir que aquela não tinha sido a sua melhor decisão, pois agora a Moça Ruiva estava realmente na sua frente. "Mas isso não é ótimo? Quando você pensa que o nosso querido carteiro não vai conseguir entregar a encomenda, ele vem e surpreende mais uma vez" - ela ria e apontava novamente a pistola para o coração de Joel. Dessa vez o homem decidiu aceitar a profecia, ou pelo menos fingir que existia. Criou coragem e rapidamente a chutou nas pernas, fazendo-a cair. Enquanto ela se recuperava, Joel saiu correndo para o outro lado do beco e viu um Corvette 78 azul se aproximando em velocidade. Ele fez o máximo para chamar a atenção até obrigar o veículo parar. "Por favor, me leve para longe daqui" - enquanto falava, abriu a porta e entrou no carro. "Calma aí, amigão. Pegue essa garrafa de Rum e diga o que está acontecendo exatamente" - O motorista, com um cavanhaque grisalho e uma jaqueta de couro com as mangas arrancadas olhava pelo retrovisor do Corvette para garantir que ninguém os seguia. "Você não vai acreditar em mim. Adianta falar?" "Se você quiser que eu o leve para algum lugar ou salve o seu corpinho de quem quer que seja, pelo menos tenho que saber qual é a situação". Joel explicou sobre a Moça Ruiva, sobre a Profecia e sobre o fato de ser o novo super-herói do mundo. O motorista do Corvette não disse uma palavra até parar em um bar na beira da estrada. "Místico's Bar" - leu em voz alta esperando alguma resposta. "O que diabos estamos fazendo aqui?". "Shh. Se o amigão ficar quietinho e esperar, verá como tudo será resolvido". Caminharam até a porta de entrada do estabelecimento completamente vazio. O homem de cavanhaque grisalho guiou Joel até o fundo do Místico's, onde havia uma porta aberta. "Alguém por aí? Trouxe uma encomenda." "Moser? É a terceira vez nessa semana que você traz alguém aqui. Espero que esse valha a pena" - Jack se aproximou de Joel, observando-o. "Ao contrário dos outros, esse tem pleno conhecimento da Profecia e jura que enxergou a Moça Ruiva caminhando pelos reflexos das poças de água". "Ela anda fazendo isso novamente? Esse truque não envelhece. Ei, John, Bob, venham aqui". Os dois irmãos foram até eles e analisaram calmamente o jeito de Joel, tentando avaliar se ele era o escolhido. "Então?" - o ex-carteiro já não tinha mais paciência. Os irmãos Bob, Jack e John caminharam ao redor de Joel e o levaram até uma mesa no centro do bar. Sentaram-se e encheram seus copos com uma bebida verde, não muito confiável para o gosto do aspirante a herói, e tentaram explicar com calma qual seria o futuro desta jornada. "Nós somos viajantes, Jack, John e eu. O nosso amigo Moser aqui recruta pessoas com possíveis chances de se tornarem líderes nestas aventuras. Geralmente as nossas expedições não levam mais de uma semana e são incrivelmente inúteis, pois nós acabamos acampando em algum lugar do mundo. Mas não dessa vez. Quando ouvimos os rumores de que a Profecia havia finalmente sido anunciada, dedicamos todas as nossas forças para achar o escolhido. E esse, meu caro, pelo jeito é você. Apenas precisamos de uma coisa sua antes de partirmos" - Bob explicou, não tudo, mas o suficiente para acalmar os ânimos de Joel. "Certo, entendi, mais ou menos. Mas onde a Moça Ruiva entra nessa história? Ela está me perseguindo, sabe?" "Tudo em seu tempo. Ela não será um problema agora que você está conosco. Para a sua felicidade nós temos tudo o que você precisa para ficar protegido. Pelo menos, mais a salvo do que lá fora, no escuro" - Bob concluiu a conversa. Joel já estava se levantando para sair e começar a jornada, seja lá para onde fosse, porém Moser colocou a mão em seu ombro e o obrigou a sentar novamente. "Nosso trabalho ainda não acabou" - John anunciou, olhando seriamente para o rosto de Joel. - "Cada um de nós tem um copo com uma substância verde no seu interior. Não se preocupe, amigo, ela tem um delicioso sabor de menta. Nós devemos beber o conteúdo para que o processo seja concluído".
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Desta vez ninguém questionou. Ao mesmo tempo pegaram o copo e beberam. Quando abriram os olhos estavam cercados por uma floresta infinita, com árvores gigantes e de folhas secas, e um céu tão negro e aterrorizante que fez os viajantes tremerem as pernas. Não existia mais bar, nem Nova Utopia. No horizonte, puderam ver uma montanha com um pico dourado apontando para o céu. Ela era maior e mais distante do que qualquer coisa que tinham visto em suas vidas. Joel concluiu que aquele era o "Monte Realmente Alto E Muitíssimo Difícil De Se Achar e pegar a Gema Incrivelmente Bonita E Poderosa Que Pode Salvar O Mundo", previsto pelo Profeta. "Bem, aparentemente funcionou, e pelo jeito você é mesmo o herói da Profecia" - Jack anunciou, com um sorriso no rosto misturado com uma ansiedade incontrolável. "E agora?" - Moser questionou, realizando que não teria mais o seu Corvette 78. "Agora nós vamos explorar!" - Joel exclamou. Todos voltaram os olhos para o ex-carteiro, surpresos. "Esse lugar, meus amigos, está me deixando extremamente confortável e confiante. Vamos tirar vantagem disso antes que acabe!". "Mas para onde nós devemos ir?" - Moser perguntou enquanto o grupo caminhava para frente, cada vez mais se embrenhando na floresta. "Não sei como, mas conheço exatamente o lugar onde devemos ir" - Joel, antes cego para toda a Profecia, agora os guiava como se tivesse passado toda a sua vida naquele mundo. Percebeu, então, que aquele era o seu verdadeiro lar. Os cinco aventureiros caminharam por horas, subiram montanhas e enfrentaram tempestades, e encontraram uma cabana, que ficava na beira de uma lagoa incrivelmente cristalina. Um arrepio subiu pelo corpo de Joel ao ver o reflexo da Moça Ruiva pairando sobre a água, apenas aguardando a hora de atacar. Munido de coragem, virou as costas e continuou caminhando. "Vamos". Eles o seguiram e entraram na casa de madeira. Lá, encontraram o Profeta sentado à mesa, tomando uma xícara de chá. Desceu a peça de porcelana e recitou os versos: Na Floresta Seca chegou; Com seus amigos viajou; Mas agora tudo está prestes a mudar; Pois a batalha vai começar. O Profeta sumiu e levou consigo a cabana. O grupo ficou parado em frente ao lago, que agora borbulhava como uma chaleira fervendo. Os cinco homens observaram a criatura emergindo e transformando a água, antes cristalina, em uma onda negra. Joel olhou para os seus companheiros e, engolindo seco, exclamou: "Fodeu!". Capítulo 3: “Ok, alguém aqui sabe usar uma espada?” - Joel gritou enquanto o suor escorria pelo seu rosto. O monstro havia emergido do lago, era gigante, gordo e pus escorria por grandes buracos espalhados pelo seu corpo mutante e truculento. “Mesmo se alguém soubesse usar, não serviria de nada, porque não temos armamento nenhum!” - Moser gritou inundado de nervosismo, enquanto o monstro, agora muito diferente da Moça Ruiva de antes, começava sua marcha para trucidar os cinco aventureiros. Suas banhas balançavam e faziam o lago se desfazer em grandes ondas que, ao mesmo tempo em que aterrorizavam os rapazes, banhava e deixava as árvores ao redor felizes ao terem nascido e crescido naquele enorme campo de batalha. “Pense, Joel, pense!” - foi quando se lembrou que ele era o herói da profecia, e que, como herói, devia ser capaz de conjurar vários feitiços e magias que com certeza os tirariam daquela tragédia. “Ok, tenho uma ideia, pessoal.” - todos olharam para ele, esperançosos e molhados. Era possível que Bob, Jack e John estivessem chorando. “E qual é a ideia?” - os três irmãos berraram em uníssono. “Apenas observem.” - Joel deu três passos para trás e esticou os braços, apontando as palmas de suas mãos para o monstro, que continuava a andar, de um modo inacreditavelmente lento. “Há! Vai! Chamas!” - Joel parecia surpreso ao ver que nada saiu de suas mãos. Nadinha. Nem uma fagulha. Os três irmãos e Moser o olhavam de forma pesarosa e catatônica. “Essa era sua ideia? Gritar? PORQUE EU POSSO GRITAR BEM ALTO, ESTÁ ME OUVINDO? PRECISAMOS FAZER ALGO. DE VERDADE!” - Moser gritava e corria com os braços para cima, rapidamente cansou de fazer a mesma rota o tempo todo, que consistia em correr em volta de todos que estavam no local. “Ok, ok, se acalma! Foi apenas um teste. EU TO SENTINDO AGORA!”
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Novamente Joel se posicionou: braços para frente, mãos abertas e palmas apontadas para a criatura, que por sinal parecia não ter saído do lugar. “CHAMAS DIVINAS PODEROSAS QUE PODEM DERROTAR UM MONSTRO, ATACAR!” - e então o mais surpreendente aconteceu, o Profeta saiu de um portal negro, posicionado em um local impossível, talvez uma dimensão alternativa. “Joel, meu filho... suas tentativas nunca darão certo, as palavras estão erradas. Todas erradas. O que você acha que é certo, é errado. Tenta agora o errado.” - e sumiu do mesmo jeito que apareceu, sem avisar, sem fazer um som. “Eu preciso de um tempo pra pensar, rapazes.” - Joel sentou, como se o monstro não estivesse andando em sua direção, mesmo que tão lento que parecia na verdade andar para trás. “O certo é o errado... o errado é o certo... hmm...” “JOEL!” - Moser gritou, não sabendo se olhava para o monstro ou para o amigo misteriosamente calmo diante daquela situação extremamente perigosa. “FAZ ALGUMA COISA!” “JÁ SEI!” - Joel levantou em um pulo e se posicionou. Braços. Mãos. Dedos. Palmas. “SAMAHC SANIVID SASOREDOP EUQ MEDOP RATORRED MU ORTSNOM, RACATA!” Primeiramente veio o espanto, os pequenos olhos de Jack, Bob e John brilhavam, tanto pelas chamas que explodiam das palmas de Joel como pela admiração diante tamanha beleza mágica. Depois veio uma surpresa maior ainda: não tinha sido o suficiente, o monstro continuava de pé. “Merda!” - Joel deixou escapar. “Merda mesmo, vamos apenas sentar e esperar a morte.” - Moser choramingou. E os cinco sentaram, o monstro continuava em sua correria, lenta... Muito lenta. Como sabiam que iam demorar a morrer, fizeram uma pausa para comer, contaram piadas e se lembraram do passado. Riram e riram mais um pouco quando Jack se engasgou com a cerveja. Voltaram a rir mais ainda quando Bob resolveu urinar no lago onde o monstro residia. Quase perderam o ar quando John jogou um pedaço de pão certeiro na boca da criatura, até perceberam que não tinha valido a pena gastar comida para rirem um pouco. “E agora?” - Joel perguntou, ainda rindo um pouco com as recentes memórias. “Eu tive uma ideia.” - exclamou Bob. “Olha pra esse monstro, estamos aqui há umas duas horas, mais ou menos, e ele parece que continua no mesmo lugar, certo?” “Certo.” - Joel, John, Jack e Moser responderam. “E se... a gente correr?” Capítulo 4: "Correr? Não, correr é pra covardes!" - Joel rechaçou a ideia. "A gente podia ir andando mesmo", completou. Todos deram de ombros, como se dissessem "pode ser". No fundo dos seus corações, a diversão dos últimos minutos pedia que ficassem ali por mais tempo, pois dificilmente teriam outros momentos tão descontraídos pelo resto da jornada. Sem que alguém desse um passo sequer, Joel voltou a olhar para o lago e para o monstro, que seguia impassível em seu avanço. Uma névoa fina começava a se formar, conforme a noite caía repentinamente e a temperatura baixava rapidamente. O Profeta apareceu novamente, mas desta vez sem profecia. Apenas sorria. Quem apurasse os ouvidos perceberia um "hihihi" bem agudo e abafado, como se o Profeta segurasse o riso. Ao ver que era observado pela aparição, Joel remoeu novamente sua profecia anterior. "O certo é o errado... o certo é o errado..." "O CERTO É ERRADO!!!" berrou aos seus colegas. "Então o certo agora é vandalismo!" Toda a turma avançou para dentro da água com paus e pedras, e tochas e telhas, sem se preocuparem em pensar de onde elas teriam vindo e como conseguiam carregar tantas coisas em suas mãos. Enquanto a neblina espessava, viram sair do lago outro rapaz, carregando uma TV de LED gigantesca. Seu nome era Cleyson, porém ninguém perguntou. "Cara, sabe o que mais me incomoda? É que as pessoas roubam a televisão, mas não levam o controle remoto!" - disse Moser. Uma risada profunda e horrível foi ouvida. O monstro tinha senso de humor, ao que parece, mesmo que ainda estivesse ocupado em seu avanço impassível. Mas a descontração durou pouco, a neblina tornou impossível enxergar mais do que um palmo à frente, e logo todos os aventureiros estavam desorientados. Podem ter sido minutos, mas pareceram horas até que o sol brilhasse outra vez e a névoa se dissipasse. Na luz da manhã, Bob apontou para seu irmão Jack, em tom de espanto. "Jack! O que houve?" "Aconteceu algo horrível, Bob... eu molhei minhas meias. Odeio andar de meias molhadas. Quero ir embora deste lugar o mais rápido possível!" "Não, Jack, olhe sua roupa!" Jack estava com suas roupas cobertas de sangue. Olhou para as mãos, que também tinham sangue, e sujeiras embaixo das unhas. "Você... matou o monstro, Jack?" - perguntou John. "Não me lembro de nada... só me lembro de avançar em direção ao lago... a neblina... e aí o sol nasceu e aqui estamos". Joel gritou de outro canto do lago. "Pessoal, o monstro sumiu! Mas o Moser também. Vocês estão bem?" Cleyson, que estava dormindo na praia com um tablet no colo, esfregou os olhos, disse que estava bem, levantou-se e entrou numa caverna, que não estava ali antes. O Profeta apareceu na porta da mesma caverna, fez um aceno com a mão e entrou. A caverna também entrou em si mesma e sumiu. O desespero bateu forte no coração dos viajantes. Sem Moser e sem carro, sem conhecerem o caminho a fazer; mesmo o alívio por terem destruído o monstro do lago não era páreo para a aflição que a incerteza do futuro trazia. Saíram andando, sem muita esperança, pelo único caminho possível, continuando a estrada que os trouxera até ali. Jack fedia e não parava de reclamar das meias molhadas. As horas se arrastavam, mas não mais do que os quatro andarilhos, sem ânimo e sem esperanças. Um Mustang buzinou e parou próximo aos aventureiros. Dele saiu uma figura mais ou menos conhecida. Seus cabelos vermelhos esvoaçantes e bochechas rosadas delicadas contrastavam com os ombros largos, que contrastavam com a cintura fina e quadris largos e redondos, que contrastavam com a canela peluda e cheia de hematomas. "Moser... você está... ruiva..." - gaguejou Joel. "E gostosa!" - reparou Jack. "Sim, graças a você, Jack. Na verdade, eu não sou mais quem vocês pensam. Eu sou uma mistura da ruiva monstro do lago com o Moser. Pode me chamar agora de Musa." - explicou a excitante e perturbadora criatura, enquanto andava em direção a Jack, e depois deu-lhe um beijo nos lábios.
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"Meninos, entrem no Mustang. Temos ainda muita estrada pra percorrer. E o Mustang é bem melhor que aquele Corvette." Animados, todos entraram no belo carro. Joel, Bob e John ficaram apertados no banco de trás, porque estes carros esportivos não são feitos pra levar tanta gente assim. No banco do passageiro estava Jack, encantado e apaixonado por sua criatura, Musa. "Então, eu te criei?" "Isso. Me criou com as próprias mãos, ontem no lago. Você arrancou pedaços de Moser e da Ruiva, e montou a mim, criação máxima que um ser humano poderia ambicionar. Um ser feito para o amor" "AAARGH" - gritou Bob, desgostoso com o irmão. "Você podia ter criado esse 'ser do amor' sem gogó, cara!". Mas Jack nada ouvia. Aos seus olhos, sua criatura era perfeita. E logo mais esqueceria até mesmo de que era seu criador, e teria apenas uma coisa em mente: aquele era seu amor para o resto da vida. Centenas de milhas de asfalto ficavam para trás. Embora, estranhamente, nenhum sinal de civilização surgisse, por mais que percorressem a estrada, nenhum dos cinco viajantes parecia se preocupar com isto. Havia no carro uma atmosfera de felicidade, a alegria daqueles momentos no lago que parecia perdida para sempre, e todos só queriam aproveitar pelo maior tempo que pudessem a sensação de paz, segurança e velocidade daquele Ford V8. Desde que não tivessem que fazer vaquinha para pagar a gasolina. A próxima noite chegou e trouxe outra vez a névoa, que começou fina, mas foi se espessando até tornar inviável a continuidade da jornada por carro. Pararam para esperar pelo próximo nascer do sol. Desceram do carro para esticar as canelas. E ali, num ressalto, Joel contou uma pessoa a mais no grupo em meio à neblina. Era o Profeta, outra vez. "Escaparam do ódio transformando-o em amor e isto foi lindo; mas chegará o tempo em que vão se deparar com o oposto". E sumiu, como de costume. Capítulo 5: Musa observava o estranho homem sumir. Achou curioso. Tudo era curioso. Ela era nova, recém criada e aquele mundo inteiro era novo para ela, mesmo que, ao mesmo tempo, já tinha conhecimento daquelas coisas. Essa contradição não impedia Musa de aproveitar os seus descobrimentos, a natureza era linda, a velocidade no Ford V8 era divina. E seu criador, Jack. Ah seu criador. Era simplesmente perfeito, sentia-se absolutamente feliz e completa por ser criatura de tal homem. Não prestava muita atenção nos outros três, mas eram boas companhias. Era hora de dormir. O amanhecer prometia novas aventuras e novas coisas para se ver. Musa adormeceu no colo do seu criador, sonhando com o mundo lindo ao seu redor. Acordou numa cama, em um quarto. Cômoda, abajur, roupeiro e um ventilador de teto. Um quarto como qualquer outro. Estava tampada e de pijamas. Confusa não entendia o que acontecia, cambaleou em direção à porta iluminada. Ouvia apenas os seus passos e o barulho de uma forte chuva, percorreu o corredor de uma casa, uma casa sem nada de especial, apenas uma casa, como qualquer outra que se encontra por aí. Musa estava entrando em desespero, não entendia o que fazia ali, chamou por Jack, precisava de seu criador, de um guia de uma so- Alguém bateu na porta da frente. Musa a abriu. - Com licença - disse o homem. Usava um sobretudo pesado e molhado pela chuva. Na sua cabeça um chapéu escondendo suas feições. Escorava um guarda-chuva aberto na parede. - Mas... o que está ac- - Shhhh. Vá para a cozinha, já a acompanho, Musa. Musa obedeceu sem questionar, na porta da cozinha e virou para olhar o estranho que tirara o chapéu. Seu rosto era duro e branco como uma caveira. Era uma caveira. Desconcertada, Musa sentou na mesa. O esqueleto de camisa e suspensórios sentou na frente dela, encarando-a com buracos negros. Duas xícaras de chá apareceram na mesa. - Quem... quem é você? - Você sabe quem eu sou - Sua voz era profunda e solene e estranhamente familiar - Onde eu estou? - Musa estava estranhamente calma, devia ser o chá. - Em lugar nenhum. Num cantinho da criação. - Você faz isso frequentemente? - O quê? - Trazer gente pra lugar nenhum. - Não. - E por que está fazendo isso agora? - Eu não sou apenas responsável por finais, os começos também são meus. Você não veio d’Ele, você é uma aberração criada por seres inferiores. - Isso dificilmente é culpa minha, né? Me trouxe até lugar nenhum para me ofender? - Não, vim aqui para te dar uma chance. - De quê? - Se livrar da vida de merda que está reservada pra você. - Mas essa não é a sua única função? - Mais cedo, no caso. - E minha vida não é uma merda. Minha vida é perfeita, fui criada para amar e ser amada, não existe nada mais belo. - Não me faça rir - Ela ria, uma visão aterrorizante - Você foi criada de forma pérfida e esse amor falso só trará sofrimento. Aqui você está livre das ilusões que vieram junto contigo, pode ver tudo como realmente é. - E ainda acho tudo perfeito, eu mesma, Jack, Joel, Bob, John o Mustang. Quem precisa de mais? - Qualquer um. - Vá se foder. - Deveria pensar duas vezes antes de mandar eu me foder. Ele não vai gostar disso. - Vá se foder você e Ele. Todos os três d’Ele. A Morte suspirou. - Que foi? Cansou de fazer seu trabalho? - Esse não é meu trabalho, é só um favor. - Ah é? Pra quem? - O homem que eles chamam de Profeta. - E por que alguém como você deve algo a alguém como ele? - Bem, uma vez o cara que vive com ele, Cleyton mat... Hey! Isso não importa. - Mas é cl- - Cale-se. A Morte tomou o chá por longos minutos, parecia gostar. - Então. - Então. - Vou acabar logo com isso. Primeiro, você não é perfeita, Musa. Você tem uma personalidade cheia de furos, foi mal criada, sentirá falta de muitas coisas e pior, seu criador o criou como uma transexual.
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- E o que diabos isso tem de errado? - Nada, mas a sociedade escrota dos humanos terá alguns problemas com essa decisão. - Foda-se a sociedade escrota dos humanos, eu só preciso do meu criador e dos outros três. - Ha, os outros três... Bob e John, preciosos irmãos do seu criador que você parece gostar tanto, bem, eles não são nada de bom. - O que diabos você quer dizer com isso? - Dois anos atrás os dois juntos estupraram uma garota de 16 anos. Receber uma notícia dessas é chocante, mas receber essa notícia da própria Morte, em lugar nenhum é arrasador. Mesmo com seu conhecimento limitado, Musa sabia no que aquilo implicava. Estava com ânsia. - Mas.... eles não importam.... podemos nos livrar deles... eu e Jack, criatura e criador....Ainda tem o Joel! - Joel. O que vocês sabem dele? - Bem, nada, mas... - Joel já me entregou mais gente do que um panfleteiro entrega panfletos numa tarde quente de verão numa capital de estado. É um psicopata de primeira, está apenas esperando a hora para se livrar de todos vocês. - Nós matamos ele primeiro! Se eu falar com Jack ele se livra dele...e dos irmãos! De todos eles! Ele me ama e eu o amo! - Ama? Lembre-se que ele é o cara que criou um ser por não conseguir ser amado, por ser um total fracasso. Você pode até amar ele, mas é porque ele te obrigou, você nunca teve escolha. Você viverá com ele, mas nunca será feliz, você é incapaz disso. O estômago de Musa revirou, seu peito apertou e sua mente disparou. Estava confusa, queria voltar pros braços de Jack, mas os argumentos eram tão contrários.... Não sabia o que fazer, aliás, não sabia nem o que poderia fazer. - Está na hora. - Hora do quê? - Disse que lhe daria uma chance, bem, está na hora. Ao redor de Musa lugar nenhum desapareceu. Na sua frente A Morte usava seu sobretudo e chapéu, na sua mão esquerda um guarda-chuva. A mão direita permanecia estendida em sua direção. Atrás dela apenas a cama em que acordou. - Viver ou morrer, Musa. Ela hesitou. Capítulo 6: Um clarão iluminou o quarto e Musa não pôde ver mais nada. Por segundos ela se levou a acreditar que A Morte atendera seu pensamento e tivesse a levado embora da vida terrena. A claridade exagerada desapareceu do quarto e Musa estava sozinha, sentada na cama e no escuro. Bem que a luz poderia voltar, sussurrou ela. Não gostava de escuro e aquele sonho – se é que fora um sonho – a assustou junto com a solidão do quarto não iluminado. Musa precisava voltar para Jack. Apesar de tudo ser contra isso, era esse o destino, ela não poderia negá-lo. Musa não precisava de Jack, mas Jack precisava de Musa e ela o amava suficientemente para se arriscar por ele. Às vezes, até duvidara desse amor. Talvez fosse apenas um carinho muito grande, afinal foi Jack o único que aceitou a sua nova pessoa. Foi o único que não se importava com o passado dela, o que importava para eles era e sempre foi o momento. Morrer tornaria as coisas mais fáceis, falou. Mal sabia ela que, a alguns minutos do hotel, Jack se aproximava com um saldo de duas costelas quebradas, uma sobrancelha cortada e uma perna estraçalhada. O sol rachava o seu couro cabeludo e parecia que o sangue escorria de suas veias e artérias com mais fluidez que o normal. Sentia-se fraco e com fome, mas tudo que passava pela sua cabeça era Musa. Na verdade, Joel. Precisava se livrar daquele desgraçado o quanto antes e isso estava destruindo sua vida e a vida de Musa. Tudo o que ele queria era passar a vida ao lado da mulher que ele amava e receber reciprocidade. Ao chegar à varanda do hotel, olhou confuso. Eram muitos quartos e ele não queria aparecer na recepção no estado que estava, já que a última coisa que precisava era chamar atenção. Precisou fazer um esforço para sentar embaixo de uma árvore e esperar. Além de não saber o quarto, não poder pedir ajuda e não ter como chamar Musa por meio de algum telefone, ele estava perdendo muito sangue. Se continuasse em pé, perderia muito mais do que sentado. Fechou os olhos e sentiu a brisa. Vozes conhecidas o tiraram da tranquilidade. Eram Bob e John. - Merda. Antes de Jack tentar se esconder, os dois o avistaram. - Veja só quem está por aqui. Aquele fracassado do Blackjack. Os estupradores se aproximavam de Jack quando Musa saiu de seu quarto, curiosamente, ao lado de onde John e Bob estavam hospedados. - Musa... – falou Jack, suplicante. Musa olhou em choque para a cena dos dois estupradores à sua frente, e seu amado vulnerável, embaixo de uma árvore, perdendo mais sangue que o recomendável para um ser humano. - Foge... – Jack sussurrou enquanto tirava de sua jaqueta de couro um canivete e cortava o tornozelo de Bob. John ouviu o grito desesperado de Bob e correu para ajudá-lo, mas então o barulho do gatilho atrás dele abafou a voz do irmão e parou no meio do caminho, dando meia volta para se deparar com a cena de uma Musa assustada e com uma pistola armada em mãos. Antes que pudesse decidir, desviou da mira da arma. Musa ficou confusa e disparou, tentando acertar John, mas a bala ricocheteou no tronco da árvore e acertou a coxa de Bob. Jack tentou se levantar para atacar John, mas este foi mais rápido e o acertou com um pontapé no rosto dele. Se não bastasse a sobrancelha, as costelas e a perna, agora Jack contabilizava um nariz quebrado. O pontapé foi o bastante para a sua cabeça bater na árvore e causar desmaio. A cena de Jack caindo desacordado e Bob chorando e gritando incessantemente no chão, enquanto seu pé praticamente se separava do tornozelo, ofuscou um John completamente furioso que corria para atacar Musa com unhas e dentes. Num piscar de olhos, eles já estavam rolando no chão em uma briga que envolvia apenas o contato físico como forma de defesa e ataque. Quando John conseguiu imobilizar completamente Musa, procurou a arma que ela deixara cair antes. Ao achar, balbuciou alguns xingamentos à mulher e tentou alcançar a arma sem sair de cima dela. Assim que esticou o braço para pegar a arma, um tiro acertou em cheio sua mão e a esmigalhou em segundos. John olhou para o toco que sobrou em seu braço e desandou a gritar, enquanto as lágrimas de raiva e de dor escorriam pelo seu rosto. Musa se libertou dele e, assim que pegou sua arma do chão para atirar em John, ele já não se encontrava ao lado dela. Olhou para o horizonte da estrada e o viu correndo além do rastro de sangue que lhe seguia. Musa voltou a sua atenção para o tiro que acertou John e não encontrou ninguém por perto. Só o som de um tiro perto da árvore onde estava Jack a acordou para a realidade. Ela correu à figura alta e loira que estava ao lado de Jack e que tinha acabado de acertar à queima roupa a cabeça de Bob. - Saia de perto dele agora! Um tiro no tronco da árvore. - EU FALEI PARA SE AFASTAR! Outro tiro, mas que dessa vez quase acertou o pé de Musa. Ela parou e viu que a mulher que estava perto de Jack não o ameaçava. Pelo contrário, estava limpando o sangue do seu rosto e estancando o sangue que ainda saía com muita intensidade de sua perna. - Vá até o Mustang e busque a compressa que você tem guardado no porta-malas. - Como você… Um olhar ameaçador por parte da desconhecida fez com que Musa obedecesse sem retrucar uma palavra. Buscou a caixa de primeiros-socorros que sempre guardava no fundo do porta-malas e a entregou para a mulher. Enquanto ela fazia a limpeza dos ferimentos de Jack, Musa pôde analisar melhor a aparência da mulher. Cabelos longos, loiro escuro, olhos distantes e de uma escuridão assustadora. Era muito mais alta que Musa e, no lugar da perna esquerda, percebeu que esta era substituída por uma prótese metálica. - Afeganistão. - O quê? - Afeganistão. - Ah, desculpe... – disse Musa, constrangida por não ter sido discreta ao julgar a mulher. - Tudo bem. Acontece. - Desculpe, mas... Você participou da Guerra? - Meu ex-marido participou. Ele perdeu a perna direita em um conflito no Afeganistão. Voltou desolado para casa. Eu queria mostrar para ele que não me importava com a perda física dele. Então eu arranquei-a. - Jesus… - Ele me largou depois disso. Falou que não queria e não suportava pensar que éramos um casal de esquisitos. Ele não se aceitava como esquisito. - Meu Deus... Ele se matou? - Não – falou a mulher misteriosa, e olhou para Musa – eu o matei. Musa engoliu a seco. Conhecia aquela há menos de uma hora e já estava tendo calafrios perto dela. - Foi assim que conheci Jack. – disse A Loira. - Musa... – Antes de Musa perguntar sobre o assunto para a mulher que estava a sua frente, Jack se remexeu e a chamou. - Oi, baby. Estou aqui. - Você... Quem… - Oi Jack. – disse A Loira. - Você... O que você está fazendo aqui? - Salvando sua vida. Tente não fazer muito esforço, por favor. - O que... Quem é… - Bob. John fugiu. Amor, eu sinto muito não ter ido atrás de ti antes. – falou Musa. - O que diabos… - Jack? - Minha perna…

[O próximo autor começou a ler aqui] A Loira olhou com um olhar triste para Musa. Musa a conhecia apenas por alguns minutos e nunca imaginaria que a mulher poderia mostrar vulnerabilidade, não depois da maneira fria como agiu com os irmãos Bob e John. Em sua pose durona e com olhos vazios e escuros como o céu noturno do inverno, ela não se sentiu reconfortante com o brilho que teimava em transmitir desconfiança e incerteza. E talvez desculpas. - Jack, eu sinto muito. - O que você... Ah, minha perna... Ela... Ah… Uma dor incessante invadiu o corpo inteiro de Jack e o fez chorar. Musa o consolou. - Jack, vamos ter que amputar a perna. - Do que você tá falando? - Jack, ela está comprometida, eu acho que… - Você – olhou fundo nos olhos de Loira – não sabe de absolutamente nada. Eu não vou arrancar minha perna, não agora. Eu tenho que ir atrás de Joel como um… - Aleijado? – completou A Loira com certo receio. - Não... Eu não quis… - Eu sei que foi exatamente isso o que você quis dizer e eu não me importo. Levante e vamos logo. Precisamos falar com o Profeta antes de Joel. Ou pelo menos até que ele esteja ainda vivo. Não temos tempo. Jack foi arrastado pelas duas mulheres até o Mustang de Musa e deitou no banco de trás. Musa sentou no banco do motorista, mas A Loira saiu do carro. - Você não vem com a gente? - Eu vou – respondeu –, mas eu também tenho meu próprio veículo. Vamos. Eu alcanço vocês. Enquanto Musa ligava o carro e se afastava do hotel através da estrada de terra que seguia pelo campo, A Loira ficou observando o lugar onde Bob jazia, agora com uma expressão de dor e com um olhar tão vazio quanto da mulher que o matou. Ela começou a se perguntar se era realmente isso que ela precisava fazer no momento, mesmo que isso doesse para ela. Não saber se o que fazemos é certo ou errado até o momento em que fazemos é realmente uma merda, pensou. Por fim, coletou uma amostra do sangue que Jack perdeu, ainda estava fresco numa poça vermelha e escura, e guardou em um frasco pequeno no bolso de sua calça. Subiu em sua moto e seguiu pelo caminho oposto no qual Musa e Jack já estavam a algumas milhas de distância. - Não enxergo ela. Tenho certeza que ela sumiu misteriosamente, do mesmo jeito que chegou. - Ela... Musa… - O quê? - Não confie nela. Nem sequer tenha compaixão por ela. Ela gosta de mostrar, como cartão de visitas... – Uma onda de dor calou Jack por uns instantes, que voltou a falar, ainda ofegante – ... as coisas pelas quais ela é capaz. Musa olhou para Jack pelo retrovisor. - Musa – terminou ele -, precisamos ter cuidado com ela. Capítulo 7: O apartamento onde o Profeta morava ficava em um prédio cuja fachada era de tijolos que algum dia no passado foram vermelhos, mas que hoje não eram nada muito mais que um tom rosado sujo e manchado. O bairro era estranho aos olhos de Jack. Parecia organizado e limpo na medida do possível. Via pessoas com rostos comuns passeando com seus cães; mães ou babás empurrando carrinhos de bebês, e pessoas saindo da padaria com um pacote de pão embaixo do braço e segurando um jornal nas mãos. “Isso está errado”, pensou ele, contorcendo-se de dor no banco de trás do Mustang. Jack não tinha como acreditar que o Profeta vivesse em um lugar tão normal. Musa desceu do carro primeiro e o ajudou a descer logo em seguida. Por alguns instantes, eles ficaram ali parados na calçada, ele apoiado no ombro perturbadoramente musculoso dela, observando a fachada daquele prédio monótono. - Você tem certeza que é aqui? – Pergunta Jack, incerto, com a dor na perna turvando a sua visão. - Claro – Respondeu Musa sem pestanejar – Eu sei, eu sei... a primeira vez que eu vim falar com o Profeta também fiquei meio desconfiada. Pelo que tinha ouvido falar dele, achei que morasse no beco mais nojento dessa cidade. Uma brisa fresca soprava do sul e amainava o calor do sol que já estava a pino naquele momento. Entre o zumbido leve do vento e o farfalhar das folhas arrastadas por ele, Jack ouviu o ronco de uma moto se aproximando. Ele e Musa olham para trás e veem a Loira parando a moto, trazendo um homem consigo na garupa. Jack não conseguia enxergar direito por causa da dor, mas reparou que era um sujeito alto aquele, não muito forte, com um rosto estranho e a barba por fazer. Na cabeça tinha um boné que daquela distância parecia ser do Boston Red Sox, usava a camiseta de um frigorífico e nas costas trazia uma mochila preta. Jack não gostou disso. E sentiu que Musa também não quando ela respirou pesadamente ao seu lado. A Loira desceu da moto assim que o sujeito do boné de beisebol pulou da garupa. Os dois se aproximaram de Jack e Musa com uma expressão fria no rosto. - E quem é esse?– Quis saber Musa. - Um amigo – Respondeu ela, com calma – Ele vai nos ajudar. - Eu não gosto nada disso – Musa parecia realmente tensa agora – Não é certo envolvermos mais gente nessa história. - Ele é metido em histórias muito piores que essa – Garantiu a Loira, com um meio sorriso que de malicioso não tinha nada. - Qual o seu... o seu... nome? – Gaguejou Jack, querendo falar e se manter lúcido. - González – Respondeu ele secamente. Ele tinha uma voz pesada, e seus olhos eram de um castanho absolutamente genérico. “Ou eu estou delirando, ou esse sujeito não tem a menor cara de latino”, ponderou Jack. “Mas é fã dos Red Soxs mesmo”. Mas isso não era importante agora. Precisavam falar com o Profeta o mais rápido possível. O prédio não tinha porteiro. Na verdade, a portaria não era nada mais do que apenas uma porta de ir-e-vir de vidro fosco e sujo, que levava a um pequeno átrio retangular e vazio, com o chão aparentemente limpo, apesar de uma ou outra folha solta de jornal rolar pelos cantos. A escadaria parecia escura, mas em alguns lugares havia lâmpadas que davam alguma claridade. Jack ficou entre González e Musa, apoiado em seus ombros. E assim eles começaram a lenta subida das escadarias. Mesmo não apoiando a perna machucada no chão, cada passo era um tormento para Jack. A dor subia em ondas que faziam seu corpo inteiro tremer. A bile subia de sua garganta com cada vez mais intensidade, e ele sabia que não tardaria em pôr tudo para fora. A Loira vinha atrás deles. Subia indolentemente, batendo com os pés nos degraus com ligeira força, que fazia um pequeno eco vibrar pelo ar. Jack olhou de relance para trás e conseguiu visualizar apenas o balanço que ela fazia a cada passo, por causa da perna mecânica. Por um instante ele pensou também ter visto um sorriso demente naqueles lábios finos e vermelhos. “Errado... tão errado... vai... vai... terminar mal....” Ele se perdeu em devaneios enquanto o grupo dava voltas e voltas escadaria acima. Tudo voltou a sua mente. A Loira acabando sem piedade de Bob e John, todo aquele sangue espalhado pelo quarto do hotel vagabundo, os gritos, o terror, a agonia da dor. A figura insana de Joel se desenhava diante de seus olhos, com feições distorcidas, gargalhando e apontando uma faca no seu pescoço. A Morte, chegando tão perto, com seu hálito frio e olhos profundos. Quando voltou a si os quatro estavam em um corredor, não muito longo nem muito curto, onde de ambos os lados se enfileiravam várias portas idênticas umas às outras. - É no fim do corredor, último apartamento à esquerda – Disse Musa. Foi um trajeto rápido, mas que para Jack pareceu levar uma eternidade. Ele não sentia mais a perna, apenas a dor. Era como se uma força pulsasse naquele espaço, sem parar, bombeando espasmos de dor incessantemente. A porta do Profeta era absolutamente comum. Musa deu três batidas rápidas, nervosas. Não houve resposta. Outras três batidas, mais fortes. Ouviu-se um barulho no lado de dentro, que aos ouvidos de Jack pareceu ser de plástico sendo enrolado. - Só um minuto – Soou uma voz rouca do outro lado da porta. Jack conseguia ouvir também um bocado de xingamentos abafados de outra pessoa. “O tal do Cleyson” supôs, já impaciente. Cresceu uma pequena tensão entre eles, que só se desfez quando ouviram o ruído de várias fechaduras sendo destrancadas do outro lado. A porta se abriu, mas Jack não conseguiu ver alguém dentro do apartamento. - Entrem – Ordenou a mesma voz rouca – Rápido. Jack soltou o ombro de Musa e se apoiou apenas em González para conseguirem passar pela porta. Logo atrás deles vieram Musa e a Loira. O apartamento não era muito grande, com poucos móveis. E estava todo coberto por plástico. “Não era barulho de plástico sendo enrolado”, deu-se conta Jack. “Era barulho de plástico sendo desenrolado”. Um calafrio percorreu sua espinha e por pouco não caiu no chão. González o deixou cair sentado em uma poltrona, igualmente coberta de plástico. - Profeta – Começou Musa, com ansiedade – É sobre o Joel. - Ah, obviamente – Respondeu o homem de rosto ressecado, nariz longo e olhos de um verde pálido quase sem vida – Eu vi esse dia chegando. Fizeram bem em ligar antes de virem. Deu tempo de arrumar tudo aqui. - Como assim? – Perguntou Musa, confusa – Quem ligou pra você? - Eu – Respondeu a Loira, que estava escorada na parede ao lado de uma janela, observando a rua lá embaixo e fumando um cigarro – Um certo serviço sujo ainda precisa ser feito, Musa. - Nós viemos aqui falar com o Profeta pra tentarmos sair dessa encrenca dos infernos! – Berrou Musa, com uma voz tão grossa que fez Gonzáles arquear as sobrancelhas – Parece que você quer nos meter em uma maior ainda! - Não. Esse é o primeiro passo pra sairmos dela. Eu não me importaria, mas acho que você não vai gostar de mais um corpo nessa história toda. - Mas aqui não é lugar! Jack precisa de um hospital!
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- E o que você pretende contar pros médicos? Vai contar nossa aventura com Bob e John? Conheço você há pouco tempo, Musa, mas já sei que você não sabe mentir. Dessa vez Musa não respondeu. Com os poucos instantes de descanso, Jack conseguiu clarear um pouco os pensamentos. Ele já entendeu que amputariam sua perna, mas estava cansado e com dor demais para entrar em desespero. Por sua mente passou um rápido pensamento de que talvez fosse melhor que desse errado e ele acabasse morto. - Bom... como vai ser então? – Quis saber Musa, ainda receosa – O Profeta é médico e eu não sabia disso? - Não tenho nada a ver com isso – Respondeu serenamente o velho – Apenas permiti que fizessem aqui. Meu dever é ajudá-los como prosseguir depois de feito a.... cirurgia. - Puta que pariu – Disse Musa, quase como um rosnado – Quem vai fazer essa porcaria então? - Eu disse que o González veio nos ajudar – Respondeu a Loira, atirando a bituca do cigarro pela janela e vindo para o meio da sala com uma expressão de prazer no rosto – Abram espaço, tragam uma mesa e deitem o Jack em cima. Enquanto Musa e Cleyson buscavam uma mesa, e o Profeta ficava em outro canto, apenas olhando para eles com um olhar sombrio, González tirou a mochila das costas e a colocou no chão, a abriu e puxou para fora um rabicho, e saiu procurando por uma tomada. Jack, ainda sentado na poltrona, achou aquilo estranho e idiota. Era óbvio que ele tinha uma serra de amputação na mochila, para que infernos aquele suspense? - Isso não é perigoso do mesmo jeito? – Questionou mais uma vez Musa, quando ela e Cleyson colocaram a mesa no centro da sala – Isso aqui não parece exatamente o lugar mais limpo do mundo. O corte do Jack pode infeccionar e ele morre do mesmo jeito. - Não se preocupe – Garantiu a Loira – O González sabe o que fazer. González achou uma tomada e plugou o rabicho. Colocaram Jack sobre a mesa, cortaram com uma tesoura o que sobrava da perna da calça e deixaram o ferimento à mostra. Estava começando a ficar preto. - Você tem alguma anestesia? – Perguntou Cleyson, com sua cara de porco. - Não – Respondeu González, mexendo dentro da mochila. - Você... você.... – Jack gaguejava e não conseguia falar direito – É um... um médico que perdeu... perdeu a licença... ou coisa assim? - Não – Disse mais uma vez González – Na verdade eu sou pedreiro. Mas já fui açougueiro. Então tirou de dentro da mochila uma serra elétrica circular e a cravou na perna quase morta de Jack. Capítulo 8: O primeiro instinto de Jack, é claro, foi urrar de dor enquanto seu sangue jorrava em todos que estavam suficientemente próximos ao redor da operação amadora que tinha tudo para ser terrivelmente mal executada e dar errado. Não demorou para que Jack desmaiasse. Do ponto de vista dele, demorou uma eternidade. Todos os presentes ficaram bastante impressionados em maior ou menor escala. Musa precisou se apoiar na parede mais próxima para evitar desmaiar, mas os pontos pretos ainda invadiam seu campo de visão. Loira não se deixou abalar pela visão de todo o líquido mágico da vida se espalhando pela sala. Confiava nas habilidades médicas de González, coisa que não deveria ter feito. Profeta, desde o começo, não fora muito fã da ideia, mas estava ciente de que restavam poucas opções, e o fato de que uma delas era serrar a seco a perna daquela pobre alma o pegou de surpresa. - Não devíamos... fazer um torniquete? - Cleyson perguntou assim que a serra fora desligada, olhando ao redor para analisar como os outros presentes aceitariam sua sugestão. A princípio, todos deram a entender que sequer haviam prestado atenção em Cleyson. Em seguida, Loira correu até a mochila de González, de onde viera a serra, para pegar qualquer coisa comprida e fina para o torniquete, optando por uma chave de fenda, enquanto González amarrava um pedaço da calça de Jack para amarrar no que restara de sua coxa, com a intenção de parar o sangramento. Enquanto González e Loira faziam o torniquete, Profeta se aproximou de Jack e o observou com interesse por alguns segundos, constatando calmamente: - Ele está pálido demais. - Colocou a mão no rosto de Jack para medir a temperatura, crispando os lábios logo após. - E mais frio do que pessoas vivas normalmente ficam. Os dois que haviam se responsabilizado por estancar o sangue pareciam sequer ouvir o que Profeta havia dito, mas Musa e Cleyson ficaram visivelmente abalados com a informação. - Precisamos levá-lo a um hospital! – Musa declarou em voz alta, constatando o óbvio. – Ou ele vai acabar morrendo. – Constatou a segunda coisa óbvia daquela noite. - Você sabe que não podemos. – Disse Profeta, se sentando na cadeira mais próxima, repassando toda a experiência médica nula que tivera, e nos programas sobre sobrevivência e casos médicos bizarros atrás de alguma boa ideia para salvar o pobre rapaz. Sem carro, sem experiência médica e isolados da civilização ficaria quase impossível salvar Jack. A ideia mais sã naquele momento pareceu matá-lo enquanto ele estava pacificamente inconsciente. Musa decidiu não contestar, pois também não tinha em mente qualquer plano milagroso para salvá-lo. A operação poderia ter sido feita da forma correta, sem toda a carnificina, e Jack teria alguma chance de sobreviver se não pegasse uma infecção, ou seria bastante improvável naquele ambiente não esterilizado. Cleyson retirou o casaco e o usou para cobrir Jack. Nunca gostara daquela peça e, caso Jack morresse com ela, teria uma desculpa para nunca mais usá-la. Quando se virou para o lado, Cleyson ficou aterrorizado ao ver um maçarico na mão de González, e se perguntou como tantas coisas letais poderiam caber numa só mochila. - Precisamos cauterizar agora. - Ficou maluco? – Cleyson estava visivelmente alterado, possivelmente horrorizado com a possibilidade de sentir o cheiro de carne queimada pouco antes da hora do jantar. – Precisamos cauterizar sua cara! - A ferida vai infeccionar se não fizermos nada, Cleyson. – Loira disse com firmeza, obviamente achando que fora uma grande ideia de González.
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- Ele vai morrer de qualquer jeito. – A voz, vinda do outro lado do cômodo, vinha em tom baixo, saída da boca do Profeta. Todos ali foram pegos desprevenidos pela verdade que estava diante de seus olhos. – Vamos matá-lo. Assim pelo menos o poupamos do sofrimento. O ar ficara repentinamente denso e eles não ousavam se entreolhar. Todos eles sentiam uma imensa vontade de contestar tal ideia, que se obrigavam a julgar maluca, mas parecia a coisa mais sensata desde o começo da história. Musa estava estarrecida, repassando todos os acontecimentos do dia para descobrir como se metera naquela maluquice. Cleyson não queria ser o primeiro a dizer em voz alta, mas estava de acordo com tal ideia. Sabia desde que vira a serra na mão de González que Jack não sobreviveria. A questão agora era— - E quem vai matá-lo? Todos se entreolharam e recuaram um passo ou se encolheram em algum canto, menos o Profeta, mas ele certamente não se disporia a sujar as mãos com tal trabalho. - Podemos simplesmente deixar ele morrer. Vai acontecer cedo ou tarde... - Loira parecia bastante distraída com algumas mechas de seu cabelo. Ela evitava olhar os outros agora que realizara quão ruim fora a ideia de amputar a perna de Jack. - Eu posso fazer isso. - Acho que ele merece coisa melhor que um açougueiro de quinta, González. - A irritação era clara na voz de Cleyson. Nunca teria adivinhado que González mostraria ter um sangue tão frio para com colegas de equipe, ou seja lá o que fosse que Jack costumava ser. - Então você devia fazer isso. - Foi Loira quem deu esta sugestão. Musa e Profeta menearam a cabeça em sinal afirmativo. Para Cleyson, é claro, aquela ideia era péssima. Mas se não fosse ele, quem seria? Não achava justo que o responsável pela morte de Jack fosse González nem Loira, e Musa desmaiaria só de pensar em cometer tal atrocidade. O Profeta também não aceitaria o trabalho, então a única solução justa seria que ele mesmo concluísse aquilo, ou que deixassem Jack morrer por conta própria. Não faltava muito para que a falta de sangue o matasse, de qualquer forma. González levou até Cleyson uma arma, que provavelmente viera de sua mochila mágica que trazia todas as coisas proibidas e letais do mundo. Cleyson a pegou com mãos trêmulas, engolindo em seco e buscando coragem dentro de si. Seria possível que quando a história chegasse aos ouvidos da polícia, todos os presentes colocassem Cleyson como o único culpado, o bode expiatório. Capítulo 9 Mas essa história nunca chegaria aos ouvidos deles – ao menos não nos da polícia tradicional – pois algo completamente bizarro aconteceu antes que Cleyson puxasse o gatilho. Todos tiveram o impulso de se entreolharem estarrecidos repentinamente, mas havia algo de diferente. Alguma coisa tinha mudado, todos podiam sentir, mas nenhum deles sabia dizer o que era. Por isso, olharam um para o outro, confusos, tentando entender o que tinha acontecido. –Puta merda. – disse Cleyson. –Que diabos! – Exclamou Gonzáles, enquanto pegava a segunda perna que Jack perdia aquele dia. Do nada, sem que ninguém fizesse algo, a perna de Jack simplesmente caiu. Era como se tivesse sido cortada cirurgicamente. O chão estava ficando cada vez mais ensanguentado. –Está começando. – Disse o Profeta. Foi quando os dois braços de Jack caíram no chão. –Atire! Atire logo! Mas Cleyson não conseguiu obedecer ao Profeta. Estava paralisado, como se tivesse perdido o controle de seu próprio corpo. A Musa veio logo em sua direção, pegou a arma de sua mão e começou a atirar. O corpo de Jack – ao menos o que restava dele – começou a pular enquanto era atingido. A Musa apenas continuava atirando. Os projéteis da poderosa arma penetravam a carne e faziam jorrar sangue para todos os lados. A velocidade de disparo era assustadora. Restos de pele e de músculos caíam por cima dos presentes. Tick, tick. Acabaram as balas. –Pronto. – Disse a Musa, deixando a arma cair. –Tinha necessidade disso? – A voz da Loira soava apavorada – Você podia ter atirado apenas uma vez! Todos estavam assustados e Cleyson foi o único que viu o que aconteceu em seguida. –Eu queria garantir. Os restos de Jack estavam tremendo e a carne em suas feridas parecia borbulhar. –Ele era nosso amigo! –Pessoal, – interrompeu Cleyson – tem algo de errado! As feridas das balas haviam se fechado e a pele regenerado – exceto os cortes dos braços e pernas – e pelos negros cresciam em todo o corpo. Gonzáles se aproximou para ver melhor. –Profeta, porra, o que é isso? Porém, antes que pudesse ouvir uma resposta, Jack levantou a cabeça e cuspiu algo. Uma gosma branca, semelhante a uma teia, cobriu o rosto de Gonzáles e o puxou para perto de Jack. Dois membros longos, como braços sem mãos, saíram de cada buraco onde antes ficavam seus braços e seguraram Gonzáles. Jack abriu a boca e começou a comer o antigo parceiro. Foi quando sua orelha explodiu. A Loira havia corrido até a mochila e pegado outra arma, mas sua pontaria não era das melhores. Gonzáles correu até ela, pegou duas pistolas, jogou uma para a Musa e os três começaram a atirar. –Não adianta! – O Profeta estava certo. A gigantesca aranha humanóide não apenas parecia nem sequer sentir os tiros que recebia, como agora criava pernas, dois membros no lugar onde antes ficava um, semelhante ao que acontecera com os braços. Tudo isso sem parar de comer Gonzáles. – Temos que sair daqui! Saíram daquele lugar. Seguiram pelo corredor, correndo, sem olhar para trás, até chegarem a um local aberto. Cleyson disse: –Eu reconheço este lugar… –Sim, – respondeu o Profeta – E eu sei como ir à biblioteca a partir daqui. Cuidem daquela coisa, eu já volto. –Mas, – disse a Loira – você vai sozinho? –Ele disse que já volta. – Respondeu a Musa. –Eu vou com você. É perigoso. – Disse a Loira. –E você acha que irá protegê-lo? – Falou Cleyson. –Melhor do que nada. –Certo. – Disse o Profeta. – Venha comigo, mas tome cuidado. –Mas e nós? – Perguntou a Musa. –Fiquem aqui e impeçam Jack de entrar no caminho da biblioteca. –Como faremos isso? – Disse Cleyson. Profeta pegou a mochila e retirou duas espingardas. –Usem isso. Irá atrasá-lo o suficiente. Cleyson e a Musa ficaram sozinhos com as armas em punho e carregadas. Foi quando viram Jack correndo. Mas não estava sozinho, Gonzáles vinha junto. Os dois estavam transformados em terríveis aranhas humanóides. Cleyson atirou – a arma que ganharam era silenciosa e não dava nenhum soco no atirador, mas era extremamente poderosa mesmo assim – no peito de Gonzáles, que caiu para trás com um grito de dor. –Toma essa, inseto filho da puta. Musa atingiu rapidamente Jack duas vezes – uma no peito e outra na cara. Seu rosto ficou ainda mais deformado. –Não são insetos! Gonzáles se levantou e correu em direção aos dois. Jack apenas ficou tonto por alguns instantes, grunhindo. Cleyson atirou nas pernas de Gonzáles, que cairia de joelhos, se ainda os tivesse, mas foi direto de cara ao chão. –Como assim? Claro que são! Musa correu até a criatura deitada, pressionou a arma direto em suas costas e atirou três vezes. Gonzáles parou de se mexer. –São animais. Insetos têm seis patas. Cleyson correu até Jack, que se preparava para acertar Musa, e atirou várias vezes na barriga do monstro enquanto se aproximava. –Mas aranhas têm oito patas. Animais não têm apenas duas ou quatro? Musa ergueu sua arma e atirou no peito de Jack, que já estava atordoado e caiu de costas no piso do local. – Duas, quatro, ou oito. Eu acho. Eu só sei que insetos têm seis patas. Cleyson se aproximou da criatura, encaixou a espingarda em sua boca e descarregou toda a munição restante, destruindo a cabeça dele e, aparentemente, matando-o. –E as esponjas? –Que esponjas? –Aquelas do mar. Elas não têm patas. Mas elas não são animais? –Não, ué, são vegetais. Porém, a conversa foi interrompida pela voz do Profeta que ecoou dentro da cabeça dos dois. “Consegui achar um livro que contém o feitiço que precisamos.” –Wow. – Disse a Musa. – Que coisa bizarra. Cleyson sorriu, já estava acostumado com isso. “A Loira ficou cuidando do caminho para mim, acredito que estamos seguros agora. Espero que vocês estejam bem. Lembrem-se, é de suma importância que não deixem essa criatura se aproximar da biblioteca! Agora, eu preciso que vo-“ Mas a mensagem foi interrompida do nada. –O que houve? – Perguntou a Musa. –Não sei, nunca tinha visto isso acontecer... – Respondeu Cleyson. –E agora, o que faremos? Cleyson notou, então, que a Musa estava perdida. Cabia a ele de[O próximo autor começou a ler aqui]cidir.
Aquela sensação era horrível, Cleyson se viu obrigado a decidir como agir sem a menor ideia do que fazer. Parece até que o filho da puta me deixou meia palavra de propósito. Tentava lembrar como as coisas tinham chegado naquele ponto, mas era difícil. Não fazia sentido algum. Toda a sua história era completamente absurda. Mas sabia que seria assim quando aceitou participar. E agora precisava fazer algo. –Vamos atrás dele. – Decidiu Cleyson. –Tem certeza? – Perguntou Musa. –Não. Seguiram em silêncio por um corredor que lembrava aquele por onde vieram. Após longos minutos caminhando, viram um vulto em frente. –Oi? – Falou Cleyson. –Silêncio! – Falou a Musa. – E se for um deles? –Como? Os dois ficaram lá atrás. Aproximaram-se lentamente. A pessoa estava de costas para eles, escondida nas trevas. –Oi? – Repetiu Cleyson. Foi quando ela se virou e os dois puderam ver que era a Loira. Mas não era mais a mesma. –Puta merda, – gritou a Musa – ela foi transformada também! Ela pegou sua espingarda e puxou o gatilho, tick, mas não tinha mais balas. –Diabos, como eles a pegaram? Os dois começaram a recuar, lentamente, sem tirar os olhos da Loira, que ainda não havia caminhado em sua direção. Sabiam que não tinham condições de correr mais do que uma daquelas criaturas. –Eu não sei, – respondeu Cleyson – mas ela havia ido junto com o Profeta procurar a biblioteca depois que nossos amigos foram transformados em demônios. Ele mandou uma mensagem mágica avisando que a deixou cuidando do caminho e que já havia encontrado o feitiço, mas algo cortou o contato antes que pudesse terminar de falar. –Eu sei, ué. – Falou a Musa – Por que você está me contando essas coisas? –Porque são informações importantes para entender a situação. – Respondeu. – E eu sinto que nosso tempo está acabando… Foi quando ouviram um barulho vindo de trás. Ao se virarem, viram Jack e Gonzáles. A Loira, então, começou a se aproximar. Cleyson e a Musa ficaram parados, cercados pelos aracnídeos que se aproximavam dos dois lados. Capítulo 10: Duzentos anos no futuro. - Estamos recebendo uma perturbação no setor BF-Alfa-0912-K-1279352, senhor. Capitão Calypso suspirou, cansado. Aquele maldito setor. Olhou para as estrelas por alguns momentos e então disse: - Estão tentando matar Hitler... de novo. - Sim, senhor, eles não cansam - respondeu o soldado que monitorava as linhas temporais. - De todos os lugares para ir, todas as coisas para fazer, eles têm que escolher logo Hitler. Isso é tão ficção científica do século XX. Por que, só para variar, os malditos não escolhem matar Mao Tsé-Tung, Alexandre, o Grande ou, diabos, algum papa? É sempre o Hitler! Isso não te irrita, Fred? - Na verdade, eu só tento fazer o meu trabalho, senhor. - Queria ter esse saco. Ah, cara, não vejo a hora de me aposentar e mandar esses caras do governo se virarem sozinho quando alguém quiser matar algum genocida alemão. Aliás, eu acho que após a gente impedir esses caras, vou eu mesmo matar o infeliz. Sabe... eu me sinto mal salvando tantas vezes a vida de alguém tão ruim. Você não questiona a moralidade do seu trabalho, cadete? - Eu só trabalho, senhor. - Você é feliz e não sabe. Duzentos anos no passado. Joel e o Profeta estavam reunidos no funeral de seus amigos. As coisas tinham ido ladeira abaixo nos últimos dias. Aqueles que não foram transformados em aranhas monstruosas acabaram sendo comido por elas ou presos por estupro. Profeta estava especialmente abatido. Ele não deixava de imaginar que se tivesse chegado um pouco mais cedo, teria conseguido curar os companheiros antes do massacre. Seu único companheiro vivo, por outro lado, não parecia muito preocupado. Ele brincava com uma folha seca usando os pés. Após parar, falou: - Eu sei o que você está pensando. - Ah, é? Pode ler pensamentos agora? - Nah, mas seria esperado que fôssemos todos grandes amigos e que eu estivesse em prantos por ter perdido tantos companheiros, não? Afinal, éramos amigos há tanto tempo. O Profeta ficou calado. Aquela frase ecoava em sua cabeça: “éramos amigos há tempo”. Será? Tinha a impressão de que conhecia algumas daquelas pessoas há bastante tempo, porém, também sentia como se sua relação com elas fosse muito forçada e artificial. Ao não receber resposta, seu companheiro de luto voltou a falar: - O problema é que nós não éramos amigos. Eu não conheço nem você há muito tempo, Profeta. Sabe, eu comecei a pensar nisso ontem de noite. Estava com insônia, tendo sonhos estranhos, sonhos de outras vidas. Em uma delas, eu não conhecia nenhum de vocês. Eu... fugi de casa, sabe? Não consigo lembrar o motivo, mas eu queria uma vida de aventuras. Algo diferente. Consegui várias. - olhou sério para seu amigo - Alguém está mudando a nossa vida. Duzentos anos no futuro. - E então, senhor? Como foi a missão? - Ah, moleza. Dessa vez o Hitler me agradeceu pessoalmente. Sabe, é difícil continuar escondido após salvar tantas vezes a vida dele. Ele acha que eu faço parte do exército, ou sei lá. Só espero não começar a aparecer nos livros de história. - Senhor, tivemos outra perturbação. Mais de uma, na verdade. Dessa vez é sério. - E eu sou a única pessoa que trabalha aqui? Acabei de voltar. Chama outro. - Bem, a Alta Cúpula decidiu colocar você no trabalho, porque... bem, essa é uma das grandes. Maior do que qualquer tentativa de assassinato na Alemanha nazista. - Me passe os detalhes imediatamente. Duzentos anos antes. - Eu não faço barganhas - disse a Morte. - Mas... eu dou a minha vida em troca da deles. - Muito menos barganhas ruins! Você acha que a sua vida vale alguma coisa, humano miserável? Eu entendo a sua culpa, mas não reclame comigo. O Profeta ficou calado. Estava quase virando de costas e desistindo, quando foi chamado: - Porém, eu posso fazer uma coisa por você. Mas você, meu amigo, deve fazer algo por mim. Algumas horas depois, Joel acordou em seu quarto. O lugar era luxuoso. Havia uma cama enorme e muito espaço. Ele conseguia sentir que o dia anterior havia sido muito importante, mas só lembrava de ter ido ao funeral dos amigos e conversado brevemente com o Profeta. Levantou da cama, tomou banho, escovou os dentes e decidiu sair. Inicialmente, não lembrava porque estava naquele hotel, mas logo lembrou que havia achado um bilhete premiado na rua e, por isso, estava esbanjando. A luz do sol estava mais reluzente que o de costume naquele dia e foi agradável caminhar até o shopping para o encontro com o último de seus companheiros naquela cidade. Ele já estava na mesa do restaurante quando Joel chegou. - Bom dia, Joel. - E aê, Profeta. Beleza? Os dois conversaram brevemente. O velho parecia estar tenso, sempre olhando para os lados, como se alguém estivesse os seguindo. Quando foi indagado sobre a sua paranoia, só disse que estava com medo após os amigos terem sido transformados em aranhas. Após alguns minutos, ele parou de conversar sobre amenidades e decidiu abrir o jogo: a Morte havia tentado contratá-lo para matar Joel em troca da vida de todos que morreram nos últimos dias. Ele não havia aceitado, porém, temia que a entidade viesse buscar a vida dele ela mesma. Enquanto a conversa ainda ocorria, a porta do banheiro abriu e lá de dentro saiu um homem alto e loiro, vestido com um terno azul. Ele tirou uma pistola do bolso e começou a atirar nos dois que, suspeitando que aquilo fosse uma artimanha da Morte, decidiram correr. A perseguição do homem era implacável. Ele correu atrás deles por cerca de quinze minutos, do shopping até um beco sem saída, que Joel jurou para o Profeta que era um atalho. Encurralados, eles só tiveram tempo de implorar por suas vidas antes do primeiro e último tiro. O Profeta caiu no chão, morto. Joel foi levado pelo homem por uma das portas de um prédio ao lado e, sem saber como, se viu dentro de uma grande construção de metal, que parecia estar no espaço. Ele foi jogado dentro de uma cela, onde ficou por dias. A comida vinha em pílulas, e várias pessoas com roupas estranhas e coloridas iam fazer testes com ele. Após um tempo indeterminado, o sequestrador voltou e levou o refém até uma sala de cirurgia. Ele foi sedado e recebeu algum tipo de intervenção cirúrgica contra a sua vontade. Acordou dentro de um ônibus, ao lado de uma garota ruiva. Lembrou que ela se chamava Musa, que era uma transexual e que tinha um Mustang, e também que ela havia apontado uma arma para a cabeça dele uma vez. Porém, nada daquilo parecia real ao vê-la dormir naquele ônibus, e ele foi tendo certeza de que nunca havia realmente visto ela antes. Desceu na rodoviária seguinte e pegou um ônibus de volta para casa. Estava com saudade da sua vida. Após aquele estranho sonho, viajar sozinho não parecia mais tão legal assim. Ao chegar, foi recebido com alegria pela família. Era bom estar de novo em casa. Duzentos anos no futuro. - Por que essa cara triste, senhor? - Você não acreditaria na quantidade de vidas que eu acabei de restaurar nesse último caso, tudo poderia ter dado tão errado se eu tivesse vacilado por um momento sequer... - O dos homens que queriam impedir o presidente Obama de ser eleito? - Não, o do rapaz que tinha uma ruptura temporal dentro de si. Não sei como conseguimos ignorá-lo por tanto tempo. Ele afetou centenas de vidas e por pouco que não destruiu toda a nossa sociedade. Os chefões falaram que até a Morte estava atrás dele. Bem, o que importa é que a cirurgia deu certo e ele está consertado. - Ele ainda pode ser perigoso? - Não, mas acredito que é bom continuar a monitorá-lo. Boa noite, Fred. - Boa noite, senhor. [Lista de Autores] Capítulo 1: Gabriel Machado Pureza Capítulo 2: Jonathan Holdorf Capítulo 3: Lucas Melo Capítulo 4: Gabriel Marcondes Capítulo 5: Nícolas Vaz Capítulo 6: Maria Eduarda Schalanski Capítulo 7: Júlio Gutheil Capítulo 8: Laysla Brigatto Capítulo 9: Erick Vaz Capítulo 10: Gabriel Machado Pureza

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