terça-feira, 13 de maio de 2014

Ângela

Ângela mordeu um dos biscoitos feitos por sua tia. Eram deliciosos. Crocantes e macios ao mesmo tempo. Cada mordida era um prazer, o único que ela teria naquela noite, aparentemente. Sentada no alto de um muro de tijolos sem reboco, olhou para a lua, que brilhava cheia no céu. Precisava sair daquela cidade o mais rápido possível. Não que não apreciasse a comida caseira ou o ar puro típico das cidades do interior, mas sentia falta da sua vida na capital. Morria de saudade dos amigos e até mesmo das aulas, por mais chatos que alguns dos seus professores fossem. A vida universitária podia não ser um mar de flores, mas ainda assim, queria estar o mais longe possível de sua cidade natal.


Tirou o celular do bolso e olhou a conversa com Mariana, sua melhor amiga. Visualizada, porém não respondida. Odiava quando isso acontecia. Bufou e levantou, começando a andar em cima do muro. Não era nem nove da noite ainda. Precisaria matar muito tempo até ficar com sono suficiente para voltar para a casa da tia e consegui dormir. Estava ansiosa pela manhã seguinte. Partiria no ônibus das dez. A parente insistiu que ela almoçasse, mas a garota mentiu que precisava se encontrar com os amigos, por isso, tinha de sair antes do meio dia. Se sentia culpada por mal ter passado um dia e meio lá e já sair. Era recém sexta-feira e ela tinha prometido ficar até domingo de tarde. Porém, continuar ali parecia intolerável.

Após guardar o saco onde estavam os biscoitos, pulou por cima de uma cerca. Poucos metros, mas quase caiu. Estava ficando fora de forma. Os estudos tinham tomado boa parte do seu tempo no último mês, então mal teve tempo de se dedicar ao trabalho. Pensar nisso lhe trouxe más recordações. A morte dos pais, principalmente. Parecia ter ocorrido há tanto tempo, mas só cinco anos a separavam de uma vida normal de adolescente interiorana e da profissão que ela chamava de caça, na falta de palavra melhor. Uma vez, um padre havia lhe dito que um termo mais preciso seria exorcista, mas na visão dela, exorcizar fantasmas e espíritos malignos era algo feito com rosários, cruzes e água benta, não batendo neles até que morressem, novamente na falta de uma palavra melhor. Apesar das tristezas que a caça lhe causou, não podia se queixar. Contava 274 vitórias e somente sete derrotas em cinco anos de carreira. Mais importante do que isso, ela estava trabalhando ativamente, sete dias por semana sempre que possível, durante todo e esse tempo e ainda estava viva. “Pobres são os vivos que andam dentre os mortos”, murmurou. Suspirou e seguiu em frente, rumo ao seu colégio de ensino médio.

Ligava aquele lugar ao pior período de sua vida. Durante seu primeiro ano ali, ficou órfã e começou a morar com a tia. Algumas semanas depois, começou a caçar. Inicialmente, ela tinha sido bastante popular na escola. Atribuía a popularidade principalmente a sua simpatia e disposição de ajudar os outros. Porém, logo após o incidente, as coisas começaram a mudar.

Ouviu um grito. Em poucos instantes, ela se sentiria culpada, mas sorriu. Teria a chance de despejar as suas frustrações em algum bandido, que provavelmente ainda ficaria frustrado em saber que apanhou de uma garota que pesaria, no mínimo, uns vinte quilos a menos do que ele. Ela tinha como regra não querer bancar a heroína e sair atrás de criminosos. Não era nenhuma justiceira, mas estava tão entediada naquela noite que sabia que não iria resistir. Só precisaria se preocupar caso ele estivesse armado. Ainda assim, enfrentar um cara com uma arma tinha de ser mais fácil do que um espírito de doze braços e ela já tinha acabado com dois deles ao mesmo tempo há dois anos atrás.

Assim que ela viu a cena, porém, o sorriso desapareceu. Havia uma mulher vestida com uma mini saia e uma blusa de manga curta caída no chão com o braço sangrando. Parecia assustada, sem entender o que estava acontecendo. A explicação era uma outra mulher, que usava um velho vestido branco. Tinha longas unhas pontudas e as do braço direito estavam pingando com sangue. A cena poderia ter sido menos óbvia, porém havia uma pista muito clara do que estava ocorrendo: a mulher das unhas compridas flutuava a cinquenta centímetros do chão.

Ângela investiu a toda velocidade, tirando uma adaga de prata do bolso. Entretanto, não foi rápida o suficiente e o seu golpe foi bloqueado. O rosto da mulher fantasma era horrendo. Sua pele era muito branca, porém sua face era uma cratera vermelha. Durante um instante, agradeceu a Deus pela outra mulher, que agora choramingava no chão sem entender nada do que estava acontecendo, não conseguir ver aquilo. Ficaria traumatizada pelo resto da vida. A garra esquerda da oponente deslizou a poucos centímetros da sua barriga, fazendo com que ela escapasse de ser acertada por pouco. Desequlibrada, só teve tempo de se jogar ao chão quando a outra voou sobre ela. Por sorte, o espírito parecia ter perdido o interesse por estar ali e começou a voar em direção oposta a que ela viera. Por azar, ele era rápido e logo sumiu.

Após se levantar, Ângela foi ajudar a garota que estava caída. Puxou-a pelo braço e então a reconheceu, instintivamente deixando-a cair. Atordoada, a caçadora fugiu do local. Aquela era Jennifer, uma das pessoas que mais fez da sua vida um inferno durante a adolescência. Amaldiçoou-se por ter ido ajudá-la. Deveria ter deixado aquela idiota morrer sozinha, sem saber o que aconteceu. Talvez ela também virasse um espírito atordoado e então elas poderiam brigar em condições justas. Seria uma luta divertida.

Chutou uma lata de lixo e encostou em um muro. Não podia deixar os seus sentimentos, por mais justos que fossem, nublarem sua missão. Havia jurado terminar com todos os espíritos malignos e era o que faria. Não adiantava ficar pensando em sua ex colega. Esperava que houvesse sido reconhecida. Com certeza todas as garotas saberiam o que havia acontecido. Podia imaginar a cena. Estariam todas reunidas com as roupas caras delas, compradas pelos pais riquinhos (e vivos) rindo e falando de como ela era estranha. Jennifer contaria em detalhes tudo que aconteceu e faria elas pensarem que Ângela era uma maníaca. Ameaçaria processá-la, diria que o seu lugar era em um hospício e, se algum dia ela passasse na frente delas, elas apontariam para ela e dariam risinhos. Mas os risos não seriam o pior, o olhar delas seria. Uma mistura de diversão, malícia e um pouco de pena. Olhares que decretariam que ela nunca seria uma delas. Tinha de sair daquela cidade. Dane-se o fantasma, ele que fatiasse todas aquelas garotas, garotos e suas famílias. O espírito que cortasse todo mundo naquele maldito buraco esquecido por Deus em mil pedaços. Pensou em sua tia. Não só dela, mas de todas as pessoas que ainda morava lá e algum dia haviam sido gentis com ela. Era dever dela combater os espíritos. Só ela podia vê-los. Quando ainda morava lá, havia acabado com todos os espíritos malignos que apareceram. Tantos aqueles que viveram lá toda a sua vida como os que foram atraídos para o local sabe-se lá por que motivo. Começou a sua carreira ali e não iria deixar nada acontecer de ruim àquelas pessoas.

Aproveitou o pouco de decisão que tinha e continuou sua procura. Não encontrou nada. Por sorte, também não achou nenhum conhecido. Chegou na casa da tia às duas da madrugada e avisou que ficaria mais um dia. Antes de dormir, olhou o celular. Mariana ainda não havia respondido nada. Dormiu mal, acordando diversas vezes durante a madrugada.

Passou o dia comendo comidas gostosas sem sair da casa. Almoçou frango grelhado, lanchou sonhos caseiros durante a tarde e jantou sopa de legumes. Podia muito bem caçar durante o dia, mas evitaria ao máximo ser vista pelas pessoas agora. Não é porque queria salvá-las que arriscaria um encontro com as amigas de Jennifer ou, que Deus a livrasse disso, de mais pessoas para quem ela poderia ter contado a história. Não duvidava que a cidade inteira soubesse do acontecido. Durante a tarde, passou o tempo inteiro com a impressão de que apareceriam pessoas com tochas na frente de sua casa prontas para queimá-la por machucar o braço da garota mais popular do colégio. Mal entrou na internet, com medo de ver alguma coisa sobre o acontecido nas redes sociais. Estava paranóica, sabia, mas era difícil não estar.

Só saiu às dez da noite, quando achou que o movimento nas ruas estava parado. Ainda assim, se jogou no meio de um matagal e pulou uma cerca para se esconder de conhecidos logo no início da patrulha. Dez e meia passada, não havia lutado, mas já estava em um estado deplorável. Com a roupa suja de terra, folhas no cabelo e a calça rasgada no joelho, ela andava pela cidade, temendo que não encontrasse o espírito. Existia uma regra seguida por todo espírito, seja ele malígno ou inofensivo: eles não saíam de uma área cujo raio normalmente não variava mais de cinco quilômetros. Isso já diminuía um pouco a busca, mas ainda assim não facilitava o suficiente a situação. A caçadora sabia que se tivesse de passar outra noite naquele lugar, passaria ela chorando. Tudo ali lhe fazia mal e trazia lembranças ruins. Estava se segurando o melhor que podia, era como se não quisesse demonstrar fraqueza para si mesma, mas o quanto mais se estendesse a tortura, mais fraca emocionalmente ela sabia que ficaria.

Após meia noite, cansou de procurar em vão e foi visitar o túmulo de seus pais. Sentou do lado das lápides e ficou quieta, pensando no que fazer. Lembrou-se da época de logo depois que eles morreram. Sentia-se sozinha no mundo. Ninguém conseguia entendê-la e, logo, ninguém mais queria. A família estava voltando de um restaurante durante a noite quando a mãe parou o carro e o pai desceu. Eles trocaram um olhar estranho e, enquanto o pai de Ângela se afastava, a mãe tentou sair dali com o veículo. A filha, no entanto, abriu a porta e foi atrás dele. “Volte”, a mãe gritava, mas ela não conseguia entender porque ele havia saído com aquela expressão. Coisa boa não poderia ser. Após seguir ele, percebeu que ele carregava uma adaga na mão, aparentemente tentando cortar o nada. Ela gritou “Pai!” e foi a última coisa que o homem ouviu antes de ter a sua garganta cortada por algo invisível. Assustada, Ângela começou a gritar, mas seus berros não trariam o pai de volta à vida. A última coisa que viu antes de ter a sua vida mudada de forma irreversível foi a mãe se jogando em direção a ela, como se quisesse protegê-la daquela ameaça desconhecida. Não demorou para que ela visse o sangue escorrendo pelo chão. Gritou o mais alto que pôde. Gritou como se pudesse mudar alguma coisa. Não podia. Quando se afastou da mãe, viu um corpo de terno sem cabeça parado em sua frente. Achou que fosse mais uma vítima daquela noite bizarra, mas o facão ensanguentado nas mãos daquele homem não mentia. Ela era o assassino. Ângela demorou cinco meses para rastrear e matar ele após aquela fatídica noite. No meio tempo, teve de aprender tudo sozinha. Foi aprendendo, por meio de tentativa e erro, que existiam pessoas e monstros que ninguém via. Alguns ficavam inertes, sorrindo como demônios sanguinários no meio da multidão, outros gostavam de seguir as pessoas, como se fossem suas sombras. Outros saíam matando indiscriminadamente até cansarem. Alguns poucos queriam vingança. Ela sempre acreditou que, se morresse, viraria um espírito vingativo. Ou talvez Deus a perdoasse daquela dor e lhe oferecesse um lugar no céu. Notou que já estava chorando. “Eu mereço, não mereço?”, perguntou a Deus. Como sempre, ele não respondeu. Uma voz fria e baixa, porém, respondeu:

“Merece, criança. Você merece descansar em paz.”

Segurou a adaga de seu pai com força dentro do bolso e então se virou, desferindo um golpe diagonal na mulher sem rosto, que desviou facilmente.

“Por quê?”, perguntou Ângela. “Você deveria ter mais bom senso do que isso, espírito. Nunca ouviu falar de mim?”

A mulher soltou uma gargalhada gutural.

“E quem nunca ouviu falar da famosa Ângela? A exorcista.”

“Eu prefiro o termo caçadora”, rebateu ela, agora sorrindo. “Sabe, eu não uso cruzes, eu bato em vocês até vocês pararem de se mexer.”

“Oh, eu sei da sua força, criança. Ela só não é maior do que o seu sofrimento.” Ângela pulou para frente, tentando segurar a mulher, que levantou voo e parou atrás dela. “Lenta. Sonhos engordam, criança. Sorte sua que jantou legumes… ou já estaria morta.”, disse a fantasma, divertindo-se consigo mesma.

Ângela desferiu algumas rajadas de golpes, todos inúteis. Sua adversária era rápida demais e ela estava desestabilizada. A mulher sem rosto só poderia saber o que ela havia jantado se tivesse a observado. Sentiu-se uma tola impotente. Seu alvo lhe espionou o dia inteiro e ela não percebeu. Sem conseguir se aproximar o suficiente, pensou em uma estratégia.

“Se eu sou tão fora de forma e fraca, vem cá me matar, feiosa. Aposto que os seus amiguinhos fantasmas, se é que você tem algum com essa cara feia, iam adorar ouvir a história de como você matou a caçadora mais famosa daqui.”

“Mas quem disse que eu quero te ferir, querida? Você, aí do topo do seu castelo de arrogância, já se perguntou porque nós, os fantasmas malvados, que é como você deve nos imaginar, matamos?”

“E o que eu preciso saber? Eu só preciso acabar com vocês e deixar as pessoas seguras.”

“Bem, eu te explico. Você entendeu tudo errado, tolinha. Ok, matar diverte alguns de nós. Às vezes algum psicopata morre e então se vê vivendo o seu sonho molhado na pós vida. Acontece. Mas nós não matamos por diversão ou obrigação na maior parte dos casos e matar nunca é o objetivo em si. Matar é o meio. Oh, você precisa de um espelho. Essa sua carinha de confusão é uma delícia. Bem… como eu dizia… vejamos… ah. Se nós quisessemos, poderíamos matar todo mundo. Quantas pessoas com as mesmas habilidades que você você acha que existem? Não é como se houvesse uma organização ou alguém tivesse feito um censo, mas saiba que são muito poucos. Eu mesma tinha essa habilidade. Mas a vida era uma droga naqueles tempos. Vocês, crianças desse século, não sabem dar valor ao que tem. Vocês tem televisão, internet, esses… celulares aí e ainda assim estão tristes.” A mulher parou e deu uma gargalhada terrível. Ângela sentia como se tudo tremesse em volta dela. “E isso é bom, mas sabe porque, exorcista? Digo, caçadora. Porque” a mulher sem rosto sumiu e então, como se ela houvesse se teletransportado, ela estava encostada em Ângela. O braço esquerdo abraçava a garota na altura da barriga e o braço direito acariciava levemente o seu rosto, roçando as unhas afiadas ali. Houve um momento em que o mundo parou, silencioso, e então ela sussurrou no ouvido da garota “nós nos alimentamos da tristeza de vocês e você é uma mina de ouro, criança.”

A caçadora tentou atingir a fantasma, que desviou mais uma vez e então começou a flutuar a cinco metros de altura. Ela falou de novo, dessa vez sua voz parecia sair de todos os cantos:

“Chore, Ângela, meu bebê. Sofra, querida. Você nunca vai me derrotar. Melhor ainda, você nunca vai sair de perto de mim. Sabe por quê? Porque quando um espírito assombra alguém ou algum lugar, essa ligação é eterna. E assim que você colocou os pés de volta nessa cidade, meu bem, eu escolhi você. Você nunca sairá daqui, Ângela.”

Ângela sentiu-se fraca. Era como se todos os músculos de seu corpo estivessem se desfazendo. Em seguida, o chão começou a derreter e afundar junto com ela. No fundo, ela sabia que aquilo não poderia ser real, mas estava sem forças. De uma forma terrível, tudo agora fazia sentido. Os fantasmas assombravam não só lugares, como também pessoas, era por isso que algumas das pessoas que ela salvou não haviam sido atacadas, mas narrado experiências de assombro parecidas com a que ela estava tendo no momento. Uma delas lhe veio à memória, um jovem estudante da faculdade onde ela estudava que dizia ter passado um milhão de anos preso dentro de um armário. Na ocasião, ela havia o encontrado caído desacordado no chão do quarto dele, com o espírito sentado na cama e sorrindo. Os enigmáticos sorrisos dos fantasmas finalmente haviam sido desvendados por ela, porém, tarde demais. Centenas de espíritos haviam escapado impunes e agora seria a vez dela viver um sonho de um milhão de anos. Uma noite eterna em frente ao túmulo de seus pais. Foi para o túmulo que ela olhou instantes antes de afundar completamente.

Após um segundo de escuridão, ela lembrou do que havia prometido para si mesma em uma das muitas noites que dormiu com os olhos molhados do lado daquelas covas. Ela tinha uma missão. Esse segundo foi tudo que ela necessitou para quebrar o transe e então pegar a mulher sem rosto desprevenida. A faca de prata fez um corte horizontal no meio do torso dela, fazendo-a gritar, mas dessa vez sem o mesmo gosto das vezes anteriores. Sentindo como se toda a sua força tivesse voltado, Ângela acertou mais dois ataques certeiros antes do espírito se afastar.

A mulher sem rosto ficou parada a um metro e meio do chão durante algum tempo. Ângela estava intrigada, mas sua confiança havia voltado. Sentia a influência do espírito cada vez mais fraca e a imagem dela começava a ficar translúcida e piscar. Era o primeiro sinal de que ela estava enfraquecendo. Só mais alguns golpes e a existência do espírito não conseguiria mais se manter. Ainda assim, ela estava insegura quanto a isso. Achava que sabia muita coisa nesses cinco anos de trabalho, mas na verdade todas as bases que ela acreditava serem verdades inquestionáveis estavam ameaçadas. Eram cinco anos de dedução totalmente sem embasamento. Ela poderia estar completamente enganada e, ainda por cima, a mulher sem rosto era um dos espíritos mais antigos e fortes que ela havia encontrado em sua carreira. Mesmo em dúvida, resignou-se com o conhecimento que tinha: se acertasse ela mais três ou quatro vezes, aquilo seria bom, se não batesse nela, seria ruim. Ao menos alguma coisas na vida eram simples de vez em quando. Sem falar uma palavra, a mulher começou a se afastar. Por falta de escolha, Ângela decidiu seguir ela.

Ela se movia muito rapidamente, mas em um ritmo constante e lento o suficiente para poder ser seguida. A caçadora estava sendo manipulada e sabia disso. Enquanto corria, quase sem fôlego por causa da velocidade que precisava manter, percebeu que não era a primeira vez que havia sido levada por caminhos que não queria seguir. Só havia encontrado Jennifer e a salvado porque o espírito quis. Perguntou-se se ela poderia ler sua mente. Esperou que não, mas teve certeza que sim assim que percebeu para onde se dirigia e então, quase riu ao perceber a situação em que havia se colocado. Alguns metros à sua frente, estava a casa noturna mais conhecida da cidade e, lá dentro, Jennifer, suas amigas e mais todo mundo que ela odiava na cidade. Era óbvio que eles estariam lá. Só poderiam estar.

No momento em que a caçadora chegava ao local, suas algozes do ensino médio saíam pela porta junto de alguns rapazes. A mulher sem rosto parou e virou-se para Ângela, como que dizendo para ela atacar ali. Ela havia diminuído a distância e estava só a três metros. A garota quase podia ver um sorriso nas deformidades do rosto de sua assombração.

A garota hesitou por um momento e foi essa a sua danação. Não só porque as garotas haviam a visto, mas também porque ela olhou ao redor e percebeu vários rostos conhecidos, inclusive um que lhe causou pesadelos por muito tempo. Um rosto que despertou uma tristeza tão profunda que a mulher sem rosto pareceu revigorada.

Lembrou-se da noite da formatura do terceiro ano quando ela estava no segundo. Se ela tivesse de contar para alguém o momento mais infeliz de sua vida, diria com certeza que era o assassinato dos pais. Seria a resposta óbvia, afinal aquele foi um dos períodos em que ela chegou mais perto de desistir de tudo. Porém, não seria a resposta verdadeira. Ela jamais contaria a verdade a ninguém, pois lhe doía demais lembrar daquilo.

O segundo ano havia sido mais difícil do que o primeiro, já que ela havia perdido os poucos amigos que tinha e todos na escola a achavam esquisita e mal encarada. Não restava nada além de pedaços quebrados da garota gentil e prestativa que uma vez ela tinha sido. Durante os dias, encarava a escola com um rosto sem expressões. Aguentava os risos, os deboches, tentava não ligar quando alguém dizia coisas maldosas. Ela até mesmo pensava que era sua culpa. Ela não era forte o suficiente para encarar tudo aquilo e brincar, como alguns faziam. Não era corajosa o suficiente para socar a cara daquelas garotas como socava a dos espíritos malignos. Não era carismática o suficiente para merecer um mínimo de afeto. Ela sabia que não merecia nada mais do que desprezo que recebia diariamente. Sabia que não passava de uma garota estranha e fora dos padrões do que ela deveria ser. Era fácil entender que era por isso que ninguém gostava dela. Afinal, quem gostaria? Mas então, um dia, apareceu um rapaz gentil. Ele era um porto seguro em meio a uma tempestade. Conversavam durante o intervalo e cada vez pareciam ter mais em comum. Ele dizia que apesar de aparecer sempre rodeado de pessoas, se sentia sozinho. Que ela era especial e entendia ele.

Andaram juntos por algumas semanas e então, naquele mesmo bar onde ela estava no momento, ele tentou beijar ela. Ela afastou o rosto dele e disse que não, sem entender exatamente porque ele estava fazendo aquilo. A obviedade dos motivos do rapaz a atingiu em instantes, porém antes mesmo que ela pudesse explicar que via ele como um amigo e que não queria machucá-lo se envolvendo com alguém sem ter o mesmo tipo de interesse, ele levantou e começou a xingá-la. Chamou ela de muitas coisas, mas ela jamais esqueceu palavra alguma. Ela tentou explicar. Não queria perder a amizade dele, mas ele falava muito alto e a briga logo chamou a atenção de todos. Apareceu Jennifer, que se uniu ao rapaz e começou a falar, na frente de todo mundo, como ela era estranha. Como ele conseguiria coisa muito melhor do que ela. Como ela andava sempre sozinha durante a madruga. Disse que ela provavelmente era uma prostituta ou algo do tipo. Novamente, ela tentou explicar. Não podia deixar a pessoa que ela mais odiava no mundo tirar o único amigo que ainda lhe restava na escola. Ela tentou explicar de novo, mas o rapaz segurou ela e a empurrou. Caída no chão, ela tentou falar alguma coisa, mas sem sequer saber o que. Só queria reagir. Queria conseguir fazer alguma coisa. Levantou e foi em direção ao rapaz, que dessa vez a empurrou com mais força ainda. Ela se manteve de pé, mas aquilo foi a gota d’água. Ela acertou um soco tão forte na cara dele que o derrubou inconsciente no chão. E então veio o olhar. Absolutamente todos em volta dela olhavam. Ela foi pra casa e durante o ano seguinte inteiro, evitou todo e qualquer contato possível com as pessoas da escola. O rapaz, que tinha ficado com o nariz torto após o soco, nunca mais olhou para ela. Até aquela noite.

Lá estava ela naquele local. Todos os olhares voltados para ela mais uma vez. E ela ali, suja e com as roupas rasgadas. Eles falariam dela. Julgariam ela. E a mulher sem rosto ganharia a sua alma. Era como se ela crescesse em sua frente. Ela havia deixado aquele mundo e construído uma vida feliz há dois anos e meio atrás. Porém, ali estava o seu passado, lhe encarando como se ela ainda fosse uma aluna sozinha e desamparada. Se ela tentasse atacar a mulher, ainda por cima ficaria para sempre conhecida como a garota maluca que dava facadas no ar. Durante um instante, pensou em pegar a faca e cortar a sua garganta ali mesmo. Ela não tinha como resistir. A derrota era certa. Quando ela começou a mover os músculos do braço, porém, seu celular vibrou. Pegou-o e olhou o que havia acontecido.

Mariana havia respondido a mensagem:

“Oooi, angela <3 Desculpa demorar pra responder. Td anda muuuito corrido aqui. Mas então, sim, o Tiago conseguiu a vaga de emprego. Maneiro, né? Quando é vc vai conseguir um emprego? Hahaha, aposto que vc vai preferir poder dormir enquanto puder. Mas olha, ta todo mundo sentindo muita falta de vc. Volta logo pra gente. Teve uma festa muuuito maneira que eu fui ontem com as meninas. Vamos lá semana que vem! Bem, boa viagem de volta aí do fim do mundo. Bjs <3”

Pela primeira vez naquela cidade em muitos anos, as lágrimas que escorriam pelos olhos de Ângela não eram de tristeza. Ela olhou lentamente para todos ao seu redor e entendeu que eles eram parte do passado. A adolescência dela foi infeliz, mas a vida dela não era mais assim. Ela tinha amigos incríveis e que ela amava na cidade nova e adorava o seu emprego noturno como caçadora. Ela ajudava as pessoas. As cicatrizes dos tempos de ensino médio ficariam, mas as feridas já estavam cicatrizadas.

Ângela sorriu e, em quatro segundos, já havia acertado cinco facadas certeiras na mulher sem rosto, que sumiu no instante em que o último golpe terminou.

Ao redor, aquelas velhas caras. Os velhos olhares. Ela simplesmente não se importava mais. Por que deveria? Não era culpa dela não ser aceita no mundinho deles, era culpa deles serem babacas. Por que ela deveria dar a mínima para o que um bando de pessoas que ela nunca mais veria na vida e, se visse, não faria diferença, pensavam? Olhou para o rosto de Jennifer e de todas as pessoas que riram dela alguma vez na vida. Alguns estavam rindo, outros estavam confusos. Então ela guardou a adaga de seu pai no bolso e disse:

“Fodam-se vocês.”

Um comentário:

  1. O conto é bem bacana. A não cronologia do texto foi bem feita na maioria dos momentos. Os momentos de ápice são tímidos mas nem por isso imperceptíveis. O ritmo é bom, embora o texto seja extenso(principalmente se vc quer se estabelecer no espaço da internet). Um outro ponto fraco é o nome da personagem, não sei como você chegou à ele mas poderia ser um nome mais forte. A conclusão é ótima, melhor impossível. Nos obriga a ter uma opnião de simpatia ou apatia pela personagem(a minha foi de simpatia rsrsrs). Parabéns pelo texto.

    ResponderExcluir