terça-feira, 5 de julho de 2011

O Túmulo

Esse foi um conto bem difícil de escrever, mas eu realmente gostei dele, e do significado dele também.
Espero que todos gostem dele e entendam tudo certo. Boa leitura!




O Túmulo


        Caindo.
        Gary acordou suado e ofegante, mas aliviado por ter sido tudo um pesadelo. Levantou-se da cama com preguiça e olhou para a rua de sua casa, onde viu o movimento das sete da manhã. O dia ia começando normalmente, e como sempre, aquela sensação ruim pós pesadelo iria durar bastante. Ele achava que aquilo era parte do trauma causado pela morte repentina do pai, cerca de três anos atrás.
        Nunca tivera pesadelos antes daquela fatídica noite de julho. Mas depois dela, ele os tinha ao menos uma vez por semana. Nunca lembrava deles, mas a sensação lhe acompanhava por horas, além de algum eventual flash durante a tarde, ou antes de dormir, nessas ocasiões, ele sempre acabava perdendo o sono.
        Colocou o pão na torradeira e foi fazer café, tentando inutilmente melhorar seu humor. Não tivesse sido a noite ruim, ele estaria ótimo hoje, pois se encontraria com Sarah à noite, e ela estava mais atenciosa e exuberante a cada dia,fazendo-o o homem mais feliz do mundo quando estavam juntos. Em mais uma tentativa frustrada de melhorar, ligou o rádio, mas as notícias sobre a morte de um caminhoneiro na rodovia federal que passava pela cidade vizinha o deixaram mais desmotivado ainda.
        A manhã toda foi irritante, cansativa e depressiva, e nem saber que era sexta-feira o animou. Mesmo assim, fez o trabalho no escritório como sempre e almoçou com alguns colegas do serviço num restaurante de comida chinesa. “Comida chinesa é só salada”, reclamou um deles, enquanto olhava o cardápio com cara de nojo, mas Gary nem escutou, ele estava com a cabeça muito longe, e do nada, a resposta lhe surgiu à cabeça.
        Era óbvio! Como ele não tinha pensado nisso antes? Riu sozinho, ao contemplar o poder do seu inconsciente em ação. Isso porque domingo fariam três anos da morte de seu pai, então obviamente, os pesadelos cada vez mais frequentes nada mais eram do que algo dentro dele tentando lembrar-lo daquela dolorosa data. Assim, resolveu tomar uma atitude que talvez minimizasse a tristeza dele pela morte do velho pai, visitar sua cidade natal no final de semana. Nada de ruim poderia sair disso, poderia? Óbvio que não.
        A tarde foi muito mais alegre do que a manhã, tanto pelo fim da sensação causada pelo pesadelo, tanto por ele ter decidido visitar o túmulo do pai e porque veria a namorada em poucas horas. Perto das seis e meia, ele chegou em casa e foi se arrumar, cada vez mais animado. Após vestir sua roupa mais bonita, e se perfumar o máximo que pôde, ele foi até a casa dela, no subúrbio da cidade. Eles passaram ótimos momentos juntos, assim como todas as ocasiões em que estiveram juntos nos últimos dois anos e meio, e depois tiveram uma prazerosa noite de sexo, que terminou com ambos dormindo abraçados na cama.
        Outro pesadelo. Um grito.
        Não eram nem seis da manhã quando ele acordou a namorada e a si mesmo com seu grito. Os pesadelos estavam mais frequentes essa semana, o que era óbvio, já que essa era a semana de aniversário da morte do velho Sr. Linton. Os dois já tinham discutido sobre isso na noite anterior, e decidiram que iam ambos até a cidade natal de Gary, prestar as devidas homenagens ao pai dele. A garota voltou a dormir, mas ele decidiu ir arrumando tudo, para às oito em ponto sair da casa da namorada rumo a uma cidade na qual ele não colocava seus pés há mais de dois anos.
        Era verdade que ele sentia muita saudade da mãe, mas assim que terminou o ensino médio decidiu dar o fora de lá, para nunca mais voltar. Era uma cidade cheia de recordações ruins, cuja principal delas ele iria enfrentar nesse mesmo final de semana. Principalmente por isso, nunca voltou lá desde fevereiro de 2009, quando se despediu da mãe, que estava aos prantos. Ela ainda o visitava uma vez a cada três meses, aproximadamente, mas isso porque ele se recusava a voltar.
        A recusa era tão forte quanto a surpresa da mulher ao saber que seu único filho voltava da cidade grande, para enfrentar o passado e poder passar algum tempo com sua velha mãe, que não gostou de saber que teria de dividir a atenção de seu amado com filhinho com “aquela sonsa” com quem ele namorava.
        O casal saiu às oito de casa, e milagrosamente, a sensação ruim não durara nem uma hora inteira nessa manhã fria neblinosa. A viagem durou cerca de três horas, e pouco após as nove da manhã, os dois entraram pelo arco de entrada daquela cidadezinha entre os morros. Não haviam grandes prédios nem o barulho da cidade grande, muito menos agitação ou letreiros gigantes, era uma simples e calma cidade do interior, com muito verde e poucas pessoas nas ruas. Ao entrar, Gary comentou que a cidade não chegava a ter vinte mil habitantes, e que ultimamente, parecia cada vez mais vazia, segundo a mãe, depois que as duas grandes fábricas de tecido locais fecharam. Essa era uma verdade inegável para quem olhava aquele local desabitado tendo crescido lá, onde apesar do tamanho, sempre podia-se ver as pessoas nas ruas, na maioria das vezes com semblantes felizes.
        Ao norte da cidade, lado oposto ao arco por onde o carro passara, uma grande colina mostrava a igreja local, que parecia cada dia mais decadente, como aliás Gary tinha a impressão de estar tudo naquela cidade, e mesmo odiando o lugar onde cresceu, aquilo não deixava de lhe causar alguma tristeza. Seus pensamentos foram interrompidos pela bela voz de sua namorada, perguntando onde ficava a casa dele.
        A casa ficava um pouco à oeste do centro, em frente a uma praça, onde os garotos sempre iam brincar (ele tinha memórias nesse lugar), e também parecia decadente, como todo o resto. Se bem que a explicação era diferente nesse caso, provavelmente teria sido a solidão da Sra. Linton a causa para todo esse descaso com seu lar.
        Ele parou o carro na frente da casa, olhou para a praça, suspirou e finalmente adentrou o portão. Lá estava sua mãe, que parecia radiante, à despeito do resto da casa, que parecia morto e triste. Esse contraste deixou claro aos olhos dele que o problema do local era realmente a solidão da mãe, que os recebeu muito bem, com um almoço digno de festa, que os três não conseguiram comer todo, devido às proporções exageradas feitas por ela.
        As conversas durante o almoço passaram despercebidas na mente de Gary, que ficava pensando somente em visitar o túmulo do pai assim que possível, e sair daquele lugar. Ele pretendia visitar o cemitério no domingo, mas algo naquela cidade estava realmente o incomodando, e ver o estado deplorável de sua casa não ajudava em nada. Ele tinha passado sua infância e adolescência ali, e depois da morte do pai, aquela casa, que mesmo com somente três moradores era sempre barulhenta, estava vazia e morta.
        Morte. Esquecimento. Fim.
        Ele derrubou o copo da mesa quando essas três palavras passaram por sua cabeça. A mãe foi pegar algo para limpar o chão, e então Sarah lhe perguntou:
        — Tudo bem com você, querido?
        — Sim – respondeu ele, mentindo. Porém ele sabia que aquele sim não enganaria a mulher que atualmente melhor o conhecia nesse mundo. – Foi só um descuido, amor.
        Ela sorriu, mas ele sabia que não tinha a enganado. Talvez fosse melhor assim, pois ela entenderia quando ele decidisse ir embora, após a visita ao túmulo do pai. Sua mãe voltou e limpou a bagunça, trazendo um novo copo e depois eles terminaram de almoçar.
        No tempo que ainda ficou na casa durante a tarde, Gary nem andou por ela, lembranças demais para o gosto dele. Os três passaram a maior parte do tempo na sala, conversando sobre como era a vida na cidade grande, enquanto a velha enchia Sarah de perguntas sobre casamento, gravidez e várias outras coisas que a deixavam constrangida. “A velha é uma cobra, querido, ela só pergunta coisas das quais eu não gosto de falar”, disse a jovem, no verão passado, quando ambos passavam as férias na praia.
        Lá pelas três da tarde, ele decidiu que deveria fazer o que lhe motivou a ir lá, enfrentar a morte de seu pai, indo pela segunda vez em toda a sua  vida àquele túmulo. Pegou as chaves do carro e saiu de casa sozinho, pois sabia que era o único jeito.
        O cemitério era um lugar bem comum, bem mais do que ele lembrava, até. Lembrou-se de que na sua infância as crianças costumavam falar de fantasmas e rituais obscuros nesse lugar. Riu. Elas costumavam falar do Papai Noel e do Bicho Papão também. Enquanto andava pelos túmulos, seu coração gelou. Ele sentiu uma estranha sensação, algo frio, triste. Sentiu-se totalmente sozinho naquele momento, afundando cada vez mais... Logo, ele tinha afundado em meios aos túmulos, estava enterrado junto com eles, entre os mortos. Mas não via terra ou mesmo cadáveres, ele viu o cemitério durante a noite. Tudo estava borrado, mas ele pôde notar o movimento de algumas pessoas, talvez três ou quatro. Elas balbuciavam palavras que ele não entendia, e ao mesmo tempo que tudo aquilo era obviamente irreal, parecia realista e próximo demais dele. Ele sentia seus pés afundando cada vez mais, como se o chão tivesse sido transformado em areia movediça. Tudo escurecia diante de seus olhos, e aquelas palavras sem sentido tornavam-se sussurros. No ápice daquela cena assustadora, algo quente puxou-o pelo ombro, rumo à luz.
        — Hmm, já faz um longo tempo que não te vejo por aqui, garoto.
        Gary se virou, assustado. Era só o velho Padre Jenkins. Suspirou aliviado ao notar que nada daquilo fora real. Mas o alívio durou pouco, pois logo depois veio aquela sensação ruim pós pesadelo. Como ele não falou nada, o padre disse mais alguma coisa, que se perdeu no vácuo dos pensamentos de Gary, que começou a se lembrar de seus pesadelos, cenas aleatórias, que passavam em flashes pela sua cabeça. De repente, ele começou a ligar tudo. Vários pesadelos, sobre a mesma coisa, sobre aquele cemitério, sobre aquela noite. Mas que noite? Era tudo tão confuso... parecia que vários pedaços de algo quebrado se juntaram em sua mente, mas como um quebra-cabeça. Por um instante, ele pensou que fosse desmaiar, mas então ouviu?
        — Filho, algum problema? Você está me ouvindo? – Era o padre, que já começava a ficar assustado.
        — O que aconteceu aqui há três anos? – perguntou Gary, sem nem perceber as palavas saindo de sua boca.
        —  O quê?
        — Eu disse que estou bem – se recompôs – e você, como está, Padre Jenkins?
        Eles começaram a conversar cordialmente, e Gary entrou na igreja para um chá, ele falou que iria visitar o túmulo do pai no dia seguinte. A ideia de visitá-lo começou a lhe assustar, pois depois daquele sonho acordado, ele sabia que a tarefa seria difícil, e achava que iria querer ir acompanhado. Depois de cinco minutos, ele decidiu que queria mesmo era correr dali, para o lugar mais longe possível, e queria que seus pesadelos ficassem enterrados naquela cidade. Após a breve visita, ele se retirou de lá, e dirigiu-se para sua velha casa, mas no caminho, parou na praça na entrada da cidade.
        O lugar estava deserto, diferentemente da época quando ele morava lá, em que os adolescentes sempre se reuniam lá para beber e namorar, espantando boa parte dos adultos locais, que odiavam aquele comportamento desrespeitoso em lugar público. Então sentou sozinho em um dos bancos e fechou os olhos, cansado, e sem realmente saber como prosseguir naquela situação toda. Aquela sensação que a morte do pai lhe causava era, além de estranha, quase insuportável, e aquela cidadezinha lhe causava um grande desgosto. Ele só queria sair de lá o mais rápido possível. Assim que foi se levantando, ouviu uma voz feminina estridente: “Por quê? Por que você fez isso comigo, seu canalha?”
        Era só uma briga de casal, mas aquela pergunta: “Por quê?” ficou lhe martelando a cabeça. Começou a pensar na morte do pai, e descobriu que não se recordava de nada daquele mês direito, antes e depois da morte. Só sabia que o pai tinha morrido de um ataque cardíaco, mesmo sempre tendo caminhado bastante e comido bem. Talvez fosse aquele choque que tivesse o deixado tão mal, mas no fundo, sabia que não era.
        Voltou para a casa de sua mãe e então disse que visitaria o túmulo na tarde seguinte, junto de sua namorada, e quando a mãe se afastou, contou para ela a estranha experiência que tinha tido no cemitério. Ela ficou preocupada e disse que o melhor era ele sair de lá assim que possível, pois aquele lugar era realmente muito mórbido, e causava arrepios nela, além de muito mal a ele. Aquela palavra: “mórbido” chamou a atenção dele. Realmente, aquela cidade parecia morta demais, errada demais. Ele conhecia todas as pessoas de lá, mas não encontrou nenhum conhecido no lugar. E parando para pensar, todas as pessoas pareciam cansadas e tristes.
        Deixando esses pensamentos de lados, e decidido a enfrentar a morte do pai, ele pediu que a mãe lhe trouxesse alguns pertences dele, e preparou-se psicologicamente para o pior, porém, só sentiu uma tristeza deveras comum ao mexer neles, nada de sobrenatural, como parecia ser todo o resto. Olhou para sua namorada, realmente a amava, ela era perfeita demais. Combinava em tudo com ele, e ainda mais.
        Pensando no passado, retornou ao dia em que a conheceu, em sua primeira semana na cidade grande. Foi um encontro tão perfeito que realmente demonstrava como eles eram almas gêmeas. Eles se encontraram quando ele estava perdido, e ela o guiou até o centro da cidade, mas deixou cair um pacote antes de entrar em um táxi. Seguindo o endereço do pacote, ele descobriu onde ela morava, bem no dia que ela terminou com o namorado, e a consolou, o resto é história.
        Depois de começar a namorá-la, achou um emprego novo, num grande escritório, pôde comprar um carro e sua vida só foi melhorando. Tirando os pesadelos, a perfeição de sua vida contrastava com os tempos conturbados em que ele vivera naquela cidade: falta de dinheiro, problemas na escola e no amor foram alguns de seus tormentos nessa época. Por que ele não podia ter uma vida perfeita como tinha até o dia anterior? Por que aquilo o incomodava tanto? A vida dele tinha melhorado incomparavelmente, e ele tinha bloqueado quase que totalmente o problema de perder o pai, a não ser pelos eventuais pesadelos. Por que diabos ele tinha que voltar a essa cidade infernal? Por que relembrar daqueles tempos ruins, que deveriam ser esquecidos?
        Bebeu um gole de café e então respirou fundo, tirando o pouco de coragem que ainda tinha do fundo de sua alma e decidiu ir até a frente da casa. Olhou para a praça muito antes de atravessar até lá, mas quando finalmente o fez, teve uma forte sensação de deja vú. Sim, ele já tinha feito isso antes, muito tempo antes da morte do pai, na época em que começou a odiar aquela cidade.
        Era verão, e ele não tinha mais de uns onze anos de idade. Após cansar de jogar no seu Playstation, ele olhou pela janela do quarto e viu algumas crianças da idade dele brincando. Antigamente ele brincava naquela praça, as vezes sozinho, vezes com os pais e outras com algum desconhecido ou amigo da escola, que eram poucos. Mas com o tempo foi perdendo o interesse naquilo, e ficando mais em casa, onde não haviam brigas, nem discussões sobre nada. Em casa era seguro. Mas naquela tarde nublada ele não queria segurança, queria se divertir um pouco.
        Hesitou antes de sair de casa, com medo dos desconhecidos, mas acabou se juntando a eles, que brincavam de pega-pega animadamente. Um dos garotos mais velhos, Brad, não gostava de Gary e então quis impedir ele de brincar junto. Alguns concordaram, mas ela estava lá.
        E ele se apaixonou. Seu nome era Tiffany, uma bonita loirinha de nove anos, que nem sequer o conhecia, mas que odiava injustiças. Eles conversaram pouco, e sempre que ela estava em meio aos garotos, Gary aparecia na praça e brincava junto, sempre tímido demais para falar alguma coisa... Mesmo crescendo, ele foi lá por mais dois anos, até ela parar de ir, e nesse meio tempo, nunca chegou realmente a conversar com ela.
        Em uma praça velha e abandonada, ele riu. Se ainda fosse tão tímido, jamais estaria com Sarah, sorte que ele tinha mudado, e como tinha mudado. Se perguntou se Tiffany ainda morava na cidade, mas não conseguia se lembrar nem onde ela costumava morar, então tirou o pensamento da cabeça. Brincou um pouco sozinho, em um misto de nostalgia e tristeza, por nunca ter revelado seus verdadeiros sentimentos a ela naquela época (mas por quê? Ele estava com Sarah agora...).
        De noite, a janta foi a comida do almoço requentada, apesar dos protestos da Sra. Linton, que queria fazer mais comida. E depois disso, ficou decidido que o casal dormiria no velho quarto de Gary, que foi na frente, para ajeitar as coisas.
        Ele abriu a velha porta e um ar gelado lhe atingiu o rosto. O quarto tinha uma velha cama de solteiro, um armário com adesivos e uma escrivaninha com um computador velho e uma televisão do lado. A janela estava fechada, e acima dela, lia-se em letras vermelhas:
        ETOEVORACOSMT
        O dono do quarto arregalou os olhos, e foi se aproximando das letras, até tocá-las. Era sangue. Ele quase gritou quando viu seus dedos manchados com aquele líquido, mas se conteve, fechando os olhos, e quando os abriu, não existiam letras algumas, e ele ainda estava na porta do quarto. Ótimo, outra alucinação. Arrumou o que queria, chamou a namorada e foi dormir.
        Sonhou com a escola. Ele estava na oitava série, e em vez de prestar atenção nas aulas, ficava olhando Tiffany enquanto esta fazia educação física, pela janela de sua aula. O corpo dela estava realmente começando a ficar bonito, e aquelas feições angelicais pareciam mais divinas a cada dia. Ela era só uma série mais nova, mas se não fossem as broncas da mãe, ele teria repetido de ano somente para ter a chance de estar na mesma sala dela.
        Ele continuou contemplando aquela cena como um personagem invisível, olhando a si mesmo cerca de seis anos atrás. Então a imagem congelou. Ele se assustou, e quando olhou para os lados, estava tudo escuro lá fora, era noite. Os personagens do sonho continuavam congelados em meio à aula,mas Tiffany havia sumido, assim como o resto de sua turma. Da porta da sala, veio uma voz:
        — Saia. Simplesmente, saia enquanto pode. – era um homem alto e velho.
        Gary teve a nítida impressão que conhecia aquele homem. Então perguntou:
        — Quem é você?
        O homem riu.
        — Fale, droga!
        — Não me reconhece, jovem Gary? Tsc tsc tsc, isso não é o importante, sabe. O importante é fugir, amigão, cair fora, vazar, sumir, evaporar. Saia daqui!
        Gary então se lembrou daquela frase. Esse era David Graham, um amigo do seu falecido pai, que viajava muito e tinha uma casa de jogos em alguma cidade próxima. Ele adorava aquela frase.
        — Não ouviu, idiota? Você por acaso tem algum tipo grave de RETARDO? Saia daqui enquanto pode.
        —Não! – respondeu – Agora que eu já cheguei tão longe, vou descobrir o que quer que seja que está errado aqui!
        — Oh querido, o que está errado? Essa é a pergunta errada. Olhe ao seu redor, o que está certo?
        Ele afundou de novo. A sensação era ainda pior e mais imersiva do que no cemitério. Mas tirando isso, foi idêntica. De novo aquele cemitério, com as mesmas pessoas, as mesmas palavras, a mesma dor excruciante e gelada. Ele sentia como se estivesse caindo em um poço de água gelada. E então, acordou chorando. O chão estava todo sujo de sangue e vísceras, e nele estava escrito:
        ETOEVORACOSMT
        Ele pulou da cama e acordou de novo. Ainda era madrugada e Sarah dormia, com seus belos cabelos loiros cobrindo-lhe a face. Ele tentou dormir, mas não conseguiu. Assim, ligou a televisão, onde um pastor falava sobre a alma humana:
        — ... e o que são as almas? O que somos nós além de filhos de Deus? Qual o... – desligou a TV.
        Pensou na alma de seu pai. Será que ela descansava em paz em algum lugar? Caso descansasse, como seria o paraíso? Seus pensamentos foram interrompidos por algum galo cantando nas vizinhas, e então ele deitou de novo.
        Pela manhã, Sarah tentou convencê-lo a voltar a todo custo, mas ele estava irredutível, até mesmo quando a mãe deu razão a ela, achando que aquilo poderia fazer mal a ele mesmo. Mas ele não conseguia entender aquele medo bobo delas, afinal, enfrentar os problemas só poderia trazer vantagens a ele. Quando ele foi para fora, aproveitou para pegar as cartas, só havia uma, endereçada a ele. Mesmo estranhando, ele abriu, e lá estava escrito: “Saia daqui, esse é seu último aviso”, ele olhou fixamente para a carta, vendo se era real, e parecia ser, até ele piscar, quando simplesmente viu sua mão e a caixa de correio vazia. Atordoado, voltou para dentro de casa e não tocou no assunto.
        O tempo se arrastava até a tarde, e ele não conseguia tirar o pai da cabeça. E quanto mais pensava, mais alguma coisa parecia errada. Lembrou-se das palavras de David, sobre o que estava certo. Há dois dias, ele diria que tudo estava, mas hoje, parecia que nada mais estava. Sua vida toda parecia não ser mais a mesma, tudo porque uma sensação estranha lhe prendia naquele lugar.
        Quando era cerca de duas da tarde, ele decidiu finalmente visitar o túmulo, para acabar com aquilo de uma vez por todas. Andando de carro, acabou pegando um caminho diferente, e então passou pela frente da casa de Tiffany, mas decidiu nem parar, não agora.
        A primeira vez que ele foi na casa dela foi no segundo ano do ensino médio, em uma festa de aniversário, onde ele estava pronto para se declarar, mas a encontrou ao lado de Brad, que tinha repetido o primeiro ano e se apaixonado por ela. O primeiro beijo dos dois foi como uma facada no coração de Gary, que voltou para sua casa no início da festa, decidido a deixar a garota em paz agora que ela estava acompanhada.
        Lembrando disso, entendeu o motivo de ter bloqueado aquele lugar da sua memória. Depois daquilo, ele obviamente nunca mais iria naquela casa. Continuou até finalmente chegar na colina onde o cemitério ficava. Mas quando ele subia pela trilha, Sarah puxou seu braço:
        — Por favor, meu amor, não vá.
        — Para de besteira, eu preciso! Você simplesmente não entende, eu preciso ir lá.
        — Não precisa não! Você tem a mim! Você tem um emprego ótimo, céus, você tem sua mãe.
        — Mas esse pesadelos não param, preciso enfrentar isso ao menos, me entenda, por favor.
        — Não entendo! – disse ela com lágrimas nos olhos – você tinha o paraíso lá! E veio para o inferno! A nossa vida era tão perfeita, eu te amo, não faça isso...
        Mas ele não tinha ido tão longe para desistir facilmente. E nem precisava dela agora, iria sozinho se precisasse. Quando passou pelo lado da igreja, o padre disse:
        — Deus perdoa a todos, meu jovem, eles só precisam querer ser perdoados.
        Gary olhou sem entender e então foi caminhando entre os túmulos, rumo ao túmulo de seu querido pai. Aquela sensação de sempre o tomou, mas ele continuou andando. Então começou a afundar, mas ao mesmo tempo que afundava para aquele mundo de sonhos, ele continuava andando, de tão grande que era a sua determinação.
        Tudo estava envolto em trevas, e ele estava sozinho, perdido. Então Tiffany literalmente se materializou na sua frente, e depois de tanto tempo, ele ouviu a voz dela novamente:
        — Você tem certeza? Ninguém irá te impedir agora.
        — Sim.
        E então houve luz.
        Era uma tarde de junho, domingo. Tiffany bebia na praça junto do namorado, eles pareciam bem felizes juntos. Gary criou coragem e chegou até eles. Brad só suspirou, acostumado com aquilo.
        — Tiffany, eu te amo. Larga esse babaca e fica comigo! Só eu te amo de verdade, sabe? Eu tenho sonhos com você, nós vamos...
        — Sério, por que você não deixa a minha namorada em paz, seu maníaco? Cara, eu já tô cansado até de te bater, sério. Eu te apresento a Rose, ela é meio burra, mas é gostosa, daí você fode com ela e sai do pé da minha gata, que tal?
        — Brad, seu idiota, você não sabe o que é o amor! E eu sei que ela também me ama!
        Nisso, Tiffany largou a garrafa de vinho com Brad e levantou do banco:
        — Sério, sai daqui, cara. Eu não te amo, eu não sou sua amiga, e eu só dou pra você nos seus sonhos mais molhados, então cai fora! Eu te odeio! Você é um tarado tão pervertido que eu preferiria morrer do que “amar” você. Sério, pega a Rose ou então procura pornô na internet, idiota.
        E como de costume, Brad bateu nele, sob as risadas de todos. Como sempre? Sim, como sempre.
        Como nas vezes em que ele ficava de fora das brincadeiras no parquinho, olhando fixamente para Tiffany, que tinha medo dele. Como nas vezes em que ele matava aula para vê-la na educação física, ou tentava espiar ela se trocando e era pego por ele. Ou como na vez que ele invadiu a festa de aniversário dela, para pedí-la em namoro, e antes de ser literalmente chutado para fora, os dois se beijaram na frente dele.
        Ele levantou do chão e jurou que ela ainda amaria ele mais do que qualquer pessoa no mundo, saindo chorando. Ao chegar em casa, David cobrava as dívidas do pai, que gastava tudo no jogo, e ameaçava a vida dele (oh sim, eles não eram amigos...). Ele se trancou no quarto e ficou pensando no amor da sua vida, que ainda não compreendia como a vida dela seria perfeita com ele. Ah, mas ele faria ela entender...
        Pouco tempo depois, em uma certa noite de julho, ele estava em casa quando três homens invadiram a casa e bateram no seu pai. Ele pôde ouvir os ossos dele quebrando, e no final, David Graham apareceu à porta, autorizando um de seus homens a atirar. Miolos e sangue saíram da cabeça de Phill Linton, morto por não pagar suas dívidas de jogo. Os homens saíram, e a mãe de Gary entrou em pânico, chorando inconsolavelmente. Em pânico, ele saiu correndo de casa, sem saber o que fazer.
        Na frente da igreja, estava Tiffany, ela estava indo para lá dentro, mas foi parada por Gary:
        — Meu pai morreu, preciso de você, meu amor, estou tão mal – disse ele, em lágrimas, com um meio sorriso de esperança.
        — Pena que você não morreu! Assim sairia do meu pé!
        Enfurecido com mais essa rejeição, ele acertou ela na cabeça com um pedaço de pau assim que ela se virou, e com um sorriso insano no rosto, foi carregando-a para o cemitério, enquanto repetia alegremente: “Vou te mostrar meu amor, vou te mostrar meu amor”. Ele andou por todos os túmulos até chegar em um lugar afastado, quando a acordou e então mais uma vez ofereceu seu amor:
        — Eu sei que você me ama... Por que você não admite?
        — Por que eu não te amo, SEU MALUCO!!! ME LARGA!!!
        — Shhh, quieta, se alguém nos ouvir, irão tentar nos separar...
        — Me larga, por favor... – o olhos de Tiffany demonstravam seu medo, e até a mais insana das pessoas poderia compreender que ela não amava ele. Então, depois de mais de seis anos, Gary finalmente entendeu o que se recusava a acreditar desde que a conheceu: que nunca daria certo. Em lágrimas, ele disse:
        — Não importa, eu vou fazer você gostar.
        E então a estuprou, em um misto de dor, vitória e ódio. Ele podia estar com o coração quebrado, mas ao menos estava dando a ela o que ela merecia. Assim que terminou, ele viu Brad se aproximando, tarde demais.
        O homem lhe bateu violentamente enquanto falava que ele era um ser imundo e que ele não deveria ter deixado Tiffany sozinha no dia em que eles marcariam o casamento deles. Essa era a cena que ele via em seus pesadelos, tudo ficou claro agora. Tiffany em prantos em um canto, e ele apanhando de Brad.
        Voltando ao presente, ele estava ajoelhado na frente de um túmulo, chorando. David disse:
        — Eu te falei para fugir, não disse?
        Ele assentiu, ainda de cabeça baixa. Sem coragem de ler o que estava escrito no túmulo.
        —Amor, por que você fez isso? Não tínhamos a vida com que você sonhava? Emprego em um escritório na cidade grande, um carrão, o melhor sexo do mundo, somos perfeitos um para o outro, me diga, por que você fez isso!?
        Gary se virou para Tiffany, não, ele se virou para Sarah:
        — Nós tínhamos, não é, amor?
        — Sim, eu não fui suficiente para você? Só por que eu não sou a verdadeira?
        Tiffany apareceu caída ao lado do túmulo:
        — Eu te odeio, fique com ela. Fique com essa minha cópia estúpida, eu pra sempre amarei o Brad.
        Ele ficou calado e então se virou para o túmulo do lado do túmulo de seu pai. Estava escrito ETOEVORACOSMT em sangue nele. O sangue se moveu e mudou a palavra para:
        VOCEESTAMORTO
        As pessoas do cemitério desapareceram todas em um piscar de olhos, assim como as manchas de sangue, podia-se ler no túmulo:
        Gary Linton, 1991-2008
        O padre havia se aproximado silenciosamente (ou teria estado lá o tempo todo?), e disse:
        — Deus perdoa a todos, meu jovem, eles só precisam querer ser perdoados... Você estava no paraíso, mas a culpa te fez procurar pelo inferno, você nunca conseguiu deixar o passado para trás, nunca se apaixonou de novo, nunca nem tentou. E mesmo depois de morrer, você ainda lembrou daquela noite em seus mais escuros pesadelos.
        Gary ficou quieto, chorando silenciosamente.
        — Tudo que você precisava era perdoar a si mesmo, por ter machucado a pessoa que mais amou, e teria uma eternidade de felicidade, mas agora...
        — Só o inferno me espera, eu sei.
        E assim, Gary dirigiu sem rumo, até o anoitecer. Mas ele sabia, intimamente, que nunca amanheceria de novo, pois o peso no seu coração era insuportável.

2 comentários:

  1. Nossa, cheio de significados e talz... como sempre me surpreendeu xD, deveria participar de concursos literarios, é uma boa chance de por esses contos num livro.

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  2. Admito que no começo achei que fosse ser algo meio sem graça, mas a metade final me surpreendeu bastante, muito bom. ;D

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