quinta-feira, 28 de abril de 2011

A Nova Casa

Mal comecei a ler O Cemitério, de Stephen King, e já me inspirei para escrever um novo conto. Bem, minha maior dificuldade nesse conto veio depois que eu o escrevi, pois não conseguia pensar em um título adequado, ao menos acho que esse está razoável.
Dei meu melhor nesse conto e espero que tenha ficado bom. Boa leitura!

A Nova Casa

        O carro rodava pela estrada rapidamente, enquanto a chuva caía forte e constante em sua lataria. As nuvens estavam realmente carregadas naquela noite, e o motorista arrependia-se de não ter parado no caminho para escapar da tempestade. Dentro do carro haviam quatro pessoas, um homem e três mulheres, sendo que entre elas estavam as duas pessoas mais velhas e a mais nova da família.
        Ao volante estava Carla, uma mulher loira com seus cerca de quarenta anos, mas que com o seu cansaço, aparentava no mínimo estar na casa dos cinquenta. Ao lado dela, uma adolescente dormia tranquilamente no seu assento, sem nem sequer perceber o temporal que estava lá fora. Os cabelos castanho claros lhe caíam sob a bela face quando ela mexia a cabeça, durante o sono. Já nos bancos traseiros estavam uma pequena garotinha, que também dormia, e não aparentava ter mais do que uns cinco anos de idade e um garoto que jazia emburrado em um canto, com seus fones de ouvido ligados a um iPod, que o garoto já considerava velho e ultrapassado, mesmo sem tê-lo por muito tempo.
        Carla se assustou quando um raio caiu numa plantação de milho ao lado da estrada e quase perdeu o controle do carro, acordando seus filhos, que reclamaram com ela. Mandou que eles calassem a boca e acendeu um cigarro, tentando relaxar um pouco daquela viagem tão estressante, que parecia não acabar nunca. Aquela vontade de ter parado em algum maldito hotel e passado a noite lhe corroía agora, pois ela mal conseguia guiar o carro propriamente, e eram suas crianças que estavam em risco ali. Após o rápido momento de cólera, Paula começou a se preocupar com a mãe, pois notava que esta estava à beira de um ataque de nervos, e desde “aquele dia”, ela ainda não tinha falado com ninguém. Aliás, suas atitudes pareciam cada dia mais radicais e desesperadas.
        Primeiro, os acessos de fúria e de choro, coisa que não chegou a durar mais de duas semanas, depois, ela começou a querer ficar sozinha e a se trancar no quarto, provavelmente guardando suas mágoas para si, tentando protegê-los. Ainda havia Júlio, aquele insensível. Não dava a mínima pra dor de sua mãe, só se preocupava consigo mesmo e em como a depressão dela iria afetá-lo. O passo seguinte, que ocorreu cerca de dois meses depois do início de tudo, estava sendo posto em prática agora.
        — ...e realmente, não sei como você ainda tem a porra da carteira, porque meu Deus, como você dirige mal, mulher! E...
        — Cala a boca, Júlio – interrompeu Paula – você não vê que ela já tem problemas suficientes pra ficar se preocupando com as reclamações de um ingrato como você?
        E então o garoto se calou, sem ligar a mínima para o que a irmã mais velha tinha falado, mas não querendo começar uma discussão muito irritante. Ao seu lado, a temperamental Amanda chorava pedindo por atenção. Deus, era tudo tão irritante! Ele tinha uma irmã que só lhe enchia o saco, e uma pirralha que só calaria a boca se morresse (sentiu-se tentado a atirá-la da janela), além de uma mãe egoísta que tinha acabado com a vida dele. Quem disse que Deus escreve certo por linhas tortas não passava de um grande imbecil, na opinião dele.
        As nuvens pesadas despejavam uma chuva torrencial nas plantações ao redor da velha estrada estadual, enquanto os pensamentos do garoto com o iPod ficavam cada vez mais depressivos. Seus pensamentos foram interrompidos por uma luz ao longe, na estrada, e ele se animou um pouco por ter chance de ver pessoas de novo, que não fossem aquelas três mulheres insuportáveis.
        Infelizmente, a luz não era de um shopping ou de um outdoor luminoso apontando para alguma cidade, e sim de uma lanchonete suja e pequena na beira da estrada. Tomou um café e comeu pão com ovos fritos, um prato bem gorduroso. A comida realmente não era muito boa, mas poder respirar sozinho por uns instantes já era alguma coisa.
        A lanchonete estava quase vazia, só com a atendente e o dono lá. A parada não demorou nem meia hora, e logo eles voltaram para o maldito carro. O lado bom (o qual ele ficou se perguntando se tinha realmente alguma coisa de bom) era que em menos de uma hora, eles chegaram ao seu destino.
        A primeira coisa que ele fez ao chegar lá, foi descobrir onde ficava sua cama, jogando-se nela e quase que automaticamente dormindo depois disso. Passou a noite sem sonhos e acordou na manhã seguinte, quando o sol já estava alto. Primeiro, tomou um susto, perguntando-se onde estava, e quando lembrou, ficou emburrado. Bem, era hora de enfrentar a realidade, por pior que ela fosse...
        Na sala do antigo casarão, estavam quatro pessoas, que conversavam animadamente. Dois eram sua mãe e Paula, os outros dois eram Tiago e Cristina, os avós maternos dele.
        — E então foi isso que aconteceu, mamãe. – ela olhou para o recém chegado – Chegue mais perto, filho, você mal falou com os seus avós ontem, ah, meu filhote estava tão cansado...
        Encheção de saco. Por cerca de uma hora, ele foi obrigado a ficar conversando com dois velhos caipiras totalmente desinteressantes e a ouvir as lamentações da mãe, como se ela estivesse certa. Só dizia sim e abanava a cabeça em concordância de tempos em tempos, para que ninguém lhe perguntasse muita coisa, mas quando o faziam, dava respostas o simples que podia, tentando fugir do excesso de contato com a família.
        Não demorou e ele almoçou, não gostou da comida, não gostou da companhia. Assim que pôde, andou um pouco pela nova casa, para reconhecer o lugar, e depois foi para fora. Era uma casa grande de dois andares e certamente teria mais de cem anos. Era toda pintada de branco, mesmo que desbotado e tinha um galpão enorme, onde ficavam uns dois cavalos e os dois carros, o da mãe e uma lataria velha, que deveria ser do avô. A casa tinha cinco quartos no andar de cima, e no andar de baixo, uma ampla sala, cozinha e uma salinha menor, nos fundos da casa. Existia uma pequena área coberta atrás da casa e uma varandinha na frente.
        No resto do terreno, existia uma pequena plantação, com alguns legumes e flores, que provavelmente era cuidada pela velha, um chiqueiro com alguns porcos e o galinheiro, onde havia uma dúzia de galinhas, que no momento estavam soltas pelo terreno, servindo de diversão para Amanda e de preocupação para sua mãe. Olhando para frente da casa, ele via uma estrada de terra, que tinha cerca de três quilômetros de extensão e levava à rodovia estadual que eles usaram para chegar ali. Ao redor, podia-se ver muitas e muitas plantações, algumas de soja, outras de milho ou trigo e um grande bosque bem ao oeste da casa, ao lado contrário da estrada. Também existiam mais umas três casas espalhadas por lá e uma grande fazenda, da qual enxergava-se pouco, pois estava muito ao longe.
        Ele nem percebeu quando sua irmã Paula chegou e disse:
        — Então, gostando do lugar?
        Ele nem precisou dizer nada, sua cara de insatisfação era feia o suficiente para responder qualquer pergunta. Ela então, em um raro momento de afeto com o irmão mais novo, abraçou-o e disse:
        — Vai ficar tudo bem, viu? A mamãe só está estressada e precisando de um tempo, nós temos que apoi...
        Então ele a interrompeu, dessa vez, furioso:
        — NÃO! Ela está errada! E tá ferrando a família toda por causa do egoísmo dela!
        A garota foi pra trás, assustada. Seus bonitos olhos arregalados brilhavam com uma mistura de medo e desaprovação, então ela se acalmou e tentou dizer:
        — Nem mesmo você acredita nisso... Tipo, eu não sei como...
        — Ah, só cala a boca e CAI FORA. Não preciso da merda da sua pena, viu? Tô muito bem aqui.
       — Ok, dane-se, se você quer continuar se fazendo de idiota, problema seu – virou de costas para ele – mas se você continuar magoando a mamãe desse jeito, vou te quebrar os dentes.
       Júlio não conseguiu segurar um riso sarcástico, e disse:
       — Como se você conseguisse, vadia.
       Insultada e furiosa, ela saiu dali antes que acabasse por comprir sua promessa logo no primeiro dia de sua estada no campo. E assim que ela sumiu, o garoto ficou fitando o campo, com uma mistura de raiva, tristeza e mais alguns sentimentos que ele não sabia descrever.
       O dia foi passando de forma lenta e arrastada, principalmente porque a casa não tinha internet banda larga e nem sequer a 3G funcionava ali. Realmente, ele estava no fim do mundo. A janta não foi muito melhor, todos conversavam alegremente, e só ele se sentia excluído, odiando tudo e a todos, pronto pra chorar, mas segurando-se como podia, para não dar a ninguém o gosto de vê-lo daquele jeito.
       Somente quando foi para a cama pode exteriorizar suas mágoas, mas mesmo assim, chorava baixo, sentiria-se furioso se viesse mais alguém incomodá-lo dizendo que a mãe estava certa.
       Passaram-se três dias nesse lugar até a segunda-feira, quando suas aulas começariam. Ele basicamente passava o tempo todo escutando música, jogando Counter Strike no computador (porque MMORPGS nunca mais jogaria aqui) e vendo televisão. Para aumentar sua infelicidade, estava em outro estado, e não passavam os jogos do seu time aqui, a coisa mais interessante que ele viu, foi uma matéria sobre os rituais de magia dos antigos índios locais, hoje praticamente dizimados pelo homem branco. Todos foram desistindo dele, ou talvez só “dando um tempo” como a mãe chegou a mencionar, pois sabiam que de nada adiantava ficar tentando forçá-lo a gostar do lugar, e achavam que tudo teria seu tempo e logo ele iria gostar do lugar tanto quanto eles estavam gostando. Realmente, eles estavam adorando o lugar.
       A mãe estava fumando cada vez menos, apesar de ficar se lamentando muito ainda. Paula não parava de falar no cara que tinha vindo entregar a correspondência, em como ele era gentil, como era bonito, etc. Na verdade, ela só estava querendo dar para outro caipira do lugar. Já Amanda, a irmãzinha menor, brincava feliz no lugar e estava adorando tudo. Os avós, então, nem se falava, ambos estavam muito contentes por terem visitas depois de tanto tempo, principalmente da filha única que eles amavam tanto, e que tinha deixado aquelas terras há mais de vinte anos atrás, voltando pouquíssimas vezes pra visitar.
       Ele achava uma deliciosa ironia nisso. Se a mãe agora que estava deprimida precisava do apoio deles, porque ficou por quase quinze anos sem visitar o lugar? Falta de dinheiro não era, pois eles tinham feito viagens para lugares muito mais distantes nos “bons tempos”.
       Na noite de domingo para segunda, teve terríveis pesadelos, e acordou no meio da noite, quase gritando. Não conseguiu se lembrar de nada assim que levantou da cama, mas achou que tinha se recordado de algo quando descia as escadas e sentiu um estranho calafrio, a sensação era muito parecida. Depois de tomar algum leite, voltou a dormir.
       De manhã, descobriu como odiaria aquela escola. O lugar ficava a mais de doze quilômetros da casa dele, por isso, ele precisava pegar um ônibus após andar por toda a estrada de terra ou ir de carona com a mãe, que foi o que ele fez no primeiro dia de aula.
       Estava no primeiro ano do ensino médio e sua turma tinha vinte e dois alunos, mais da metade, garotos, como ele. Todos eles eram estúpidos, não entendiam absolutamente nada de música, jogos ou nada do tipo. Já as garotas, metade era muito gorda ou feia, e outra metade, podia ser bonita, mas também aparentavam aquela mentalidade do campo que o irritava tanto. Para melhorar o dia, ele se machucou na aula de educação física, e descobriu que todos ali jogavam futebol melhor que ele. Mas também, o que se esperar? Era óbvio que eles deveriam ficar jogando bola umas cinco horas por dia, já que não se tinha melhor pra fazer naquele fim de mundo lá. Na volta, teve que pegar um ônibus e caminhar, e chegou em casa cansado. A única coisa boa foi que ele estava com tanta fome que a comida pela primeira vez pareceu gostosa, mas depois de algumas bocadas, notou que não estava diferente do de sempre, e voltou a fechar a cara.
       Terça-feira, mais um dia, tudo igual. Quarta-feira, mais um dia chato. Quinta-feira, tédio mortal. Sexta-feira, reprise do resto da semana. Aquela vida era insuportável! E o que mais o irritava, era que todos pareciam estar tão felizes e animados, contando como a aula tinha legal, como era bom ter a família reunida (que piada), como o novo trabalho era divertido ou como o maldito carteiro era bom de papo. Bem, que explodissem o carteiro, ele estava mais do que farto de tudo aquilo.
       E foi nessa hora que decidiu falar com a mãe, iria dizer tudo que já estava entalado na garganta a tanto tempo, e ela que ouvisse sentada, pois iria demorar. Foi nessa hora que ele sentiu o calafrio de novo, e quase caiu no meio da sala. Aquilo era algo quase fantasmagórico, e dava uma sensação de morte, que era terrível. Ficou tão consternado com isso que decidiu adiar o dia de falar com a mãe sobre tudo aquilo.
       No final de semana, o avô decidiu fazer-lhe um agrado, e o levou para a cidade mais próxima, que tinha no máximo uns vinte mil habitantes. Ele ficou tentando puxar conversa no caminho, e falhando miseravelmente nisso. Não foi um dia muito divertido, mas ao menos existia uma lan house na cidade, onde ele passou a tarde. Ao final do dia, podia não amar o velho, mas este tinha subido muito no seu conceito. O domingo foi outro dia chato, porém um pouco menos, já que o vizinho o convidou pra jogar bola, ele se machucou de novo, mas ao menos não morreu de tédio.
       A outra semana de aula foi idêntica à primeira, e a cada dia ele ficava menos revoltado ou emburrado, e simplesmente ia se conformando com aquilo, apesar de se sentir frustrado e triste como estava assim que chegou. Já que agora ele trocava algumas palavras com o avô e a avó (que não tinham culpa nenhuma de sua mãe ser uma egoísta desgraçada), e reclamava menos, todos acharam que ele estava “se acostumando”. De fato, ele estava. Uma das grandes qualidades do ser humano é se adaptar a quase tudo, por pior que estejam as condições, e era exatamente isso que ele estava fazendo. Ele se horrorizava em pensar que em pouco tempo, estaria achando que gostava do lugar. Viveria uma vida medíocre e estúpida, mas como não tinha escolha, continuaria ali, comendo todas as manhãs e seguindo em frente.
       Sexta de noite, ele procurou uma foto no meio de suas coisas e a olhou, sentindo saudades de um tempo que hoje ele sabia que nunca iria voltar. Guardou a foto no bolso da calça e foi dar uma volta. O lado bom de se morar no meio do mato, é que não tem ninguém por perto, assim é bem menos perigoso andar no meio da noite, ou ao menos assim ele pensava. Andando no meio das plantações, como se buscasse algo sem nem mesmo saber o que era, Júlio achou uma trilha. Parecia ter sido usada recentemente e levava para o bosque. Sentiu um pouco de medo, mas a curiosidade era mais forte, e o fez seguir em frente. Enquanto se aproximava, ele sentiu mais um daqueles calafrios fantasmagóricos e quase desistiu, pois por um segundo ele teve a certeza de que não estava sozinho, e que sua companhia não estava no mundo dos vivos, por assim dizer. Mas por não acreditar em bobagens como fantasmas, ele foi até a orla da floresta, que parecia assustadora durante a noite.
       Seu coração batia rapidamente, e ele transpirava muito, com medo do que pudesse encontrar lá. Mesmo não acreditando em coisas sobrenaturais, o medo falava mais alto, e assim que algo se mexeu no meio dos arbustos, provavelmente algum pequeno animal, ele deu um berro assustado e saiu correndo pela trilha de volta.
       Chegou em casa esbaforido e foi logo pra cama, jurando não voltar naquele lugar assustador durante a noite nunca mais. No dia seguinte, ele perguntou para o avô, enquanto este cuidava dos porcos:
       — Oi vô... – o velho homem o olhou, com um largo sorriso em seu rosto – você poderia me responder uma coisa?
       — Claro, Júlio, pergunte, hehehe – deixou os porcos por um segundo e olhou sério para o rapaz – o que te aflige?
       O garoto riu, nervoso. Então se preparou para perguntar sobre a tal trilha e a floresta assustadora:
       — O senhor já sentiu um calafrio estranho e meio fantasmagórico?
       Ele fez uma cara de surpresa ao perguntar aquilo. Apesar de querer saber disso também, saiu sem querer, como se dentro dele, algo tivesse uma ânsia tão forte de saber mais sobre aquela sensação terrível que ele tinha a obrigação de perguntar. O velho demonstrou preocupação por um instante, e então o mandou buscar uma xícara de café na cozinha, pois ele queria conversar com calma. Levemente assustado, Júlio obedeceu. Logo, eles estavam sentados na área atrás da casa. O homem tomou um longo gole daquele café forte e amargo, e falou:
       — Bem, você não é o primeiro a sentir esse tipo de coisa por aqui, garoto.
       — É? Você também sentiu?
       — Ei, deixe-me falar, certo? Eu não, não sou dessas coisas – e deu uma risada um pouco forçada, tentando disfarçar o desconforto ao falar daquilo – mas bem, conheço... gente que já sentiu...
       Fez uma pausa, meio que sem saber como prosseguir. O garoto notou que ele estava suando frio, mas decidiu não interromper, ganharia mais ouvindo tudo o que o avô tinha a dizer, sendo paciente. Após vacilar mais uma vez, o velho continuou:
       — Você sabe porque sua mãe foi para a cidade grande, Júlio?
       — Ahn... para ter um emprego melhor, por que isso aqui é muito chato? Sei lá...
       Deu uma risada, mas algo naquela conversava soava muito errado, e isso estava começando a incomodá-lo.
       — Eu tinha um irmão – suspiro – seu nome era Ricardo. Aposto que sua mãe nunca falou nele. Hehe, ela parecia gostar mais dele do que de mim, sabe? Eu até tinha ciúmes...
       Silêncio. O garoto queria que seu vô continuasse, mas não insistiria antes de ver que realmente era a única opção.
       — Ele morreu. Ele sentia os calafrios. Droga, eu não devia ter te contado isso.
       E levantou da cadeira, deixando o café quase intacto, exceto por aquele primeiro gole. Júlio insistiu de todas as formas possíveis para saber mais sobre aquilo, mas o homem insistiu que tinha falado bobagens e que o irmão morreu porque estava doente, os calafrios eram por causa de uma doença. Mesmo com toda a insistência, ele não soltou mais nada.
       Mais tarde, mas ainda antes do anoitecer, o garoto decidiu ir no bosque. Essa história toda estava mal contada, e ele não conseguiria dormir se não fizesse alguma coisa, por algum motivo, ele relacionava o lugar aos calafrios, talvez porque teve alguns quando estava andando pela trilha na noite anterior.
       Dessa vez, tudo parecia calmo e bonito, inclusive no bosque. O lugar era bem diferente durante o dia, e em nada assustaria até o maior dos covardes. Ao final da trilha, que parecia muito mais longa do que fora imaginado, estava um lindo lago cristalino. A beleza do lago era tão ímpar que o garoto da cidade não conseguiu se recordar de ter visto pessoalmente nada mais belo do que aquilo. Como o lago formava uma clareira, o sol do fim da tarde batia nele e o deixava reluzente. Aproximando-se do local, ele pode perceber que mais alguém estava lá.
       Era uma adolescente provavelmente da mesma idade dele, com longos cabelos negros e um chapéu de feltro claro, lindos olhos azuis e roupas práticas, uma camisa listrada, uma calça jeans e botas marrons. Ela olhava o lago com uma expressão triste e distante.
       Júlio ficou parado a uma certa distância, fitando-a com medo de assustá-la ou algo do tipo, mas logo foi percebido.
       — Oi, forasteiro – disse a garota, com um sorriso divertido, e foi se aproximando. Suas feições estavam totalmente mudadas, sem aparentar nada daquela tristeza anterior.
       — Oi... – disse o garoto de volta, interessado – você é daqui?
       — Soooou! – disse ela, sorrindo e aproximando-se, até quase poder tocá-lo. – e você, de onde é?
       — Sou da casa dos Oliveira, logo ali atrás...
       — Ah, o casal de velhos, sem ofensas – e deu uma risadinha.
       — Sim, minha mãe veio morar pra cá, tipo, sem ofensas também, mas isso aqui é um saco!
       — Se é! Sou filha dos Bastos, e vivi minha vida inteira aqui! – forçou uma cara de choro, mas sorriu depois – preciso de um príncipe pra me salvar, que tal? – riu de novo.
       — Quê?
       — Você é meio lerdinho, né? Tão bonito e tão burrinho... – colocou a cabeça para o lado e olhou séria por uns instantes, só para sorrir de novo, esperando que ele finalmente tivesse entendido.
       — Ah, tá, eu – disse ele, rindo – Me chamo Júlio, qual seu nome?
       — Maria.
       — Então me diga, Maria, por que você estava com aquele olhar tão triste antes?
       — É porque eu estava me sentindo sozinha, mas agora não estou mais.
       E assim os dois começaram uma longa conversa, enquanto saíam do bosque (pois estava quase anoitecendo, e o garoto não queria demonstrar o medo que tinha para a amiga). Eles conversaram sobre os mais diversos assuntos, mas o que mais os unia era a vontade de sair dali, de viver na cidade grande. Ao final da tarde, Maria deu um beijo inesperado na boca de Júlio, e disse que queria vê-lo novamente.
       De uma hora pra outra, o campo passou a parecer mais divertido para o menino da cidade. Ele passava os dias com Maria, namorando e conversando, e eles pareciam ter cada vez mais em comum, até na mesma escola ambos estudavam. Todos na família ficaram muito felizes com a repentina mudança de humor dele. No fundo, tudo continuava igual para aquele garoto, mas ter com quem conversar e sonhar sair dali fazia muito bem para ele, assim como os carinhos dela.
       Ele nunca realmente parou para se perguntar o que diabos uma garota tão linda e meiga pudesse querer com ele, a ponto de praticamente se jogar aos seus braços. E ainda iria se arrepender amargamente por isso.
       Após o primeiro mês de namoro, as coisas já não eram mais tão lindas fora dele. Quando estava com Maria, era tudo paz, amor e tranquilidade, mas em casa, o garoto ficava cada dia mais agressivo com a mãe, principalmente nos dias que os calafrios, cada vez mais frequentes, lhe atingiam. Tentara diversas vezes falar com o avô, mas esse nada mais falava sobre o assunto, e não tinha vontade de perguntar para a mãe, ou intimidade para perguntar para a avó, que tinha ficado doente a algum tempo, e estava de cama. Sua namorada sobre nada sabia também, então ele não tinha mais para quem perguntar.
       Pesadelos também tinham ficado frequentes, e agora ele chegava a lembrar de relance de alguns, mas preferia não pensar, pois eram muito assustadores. Depois de acordar no meio de uma noite, ele jurou que tinha visto o fantasma de um homem olhando para ele em seu quarto. Ficou com insônia o resto da noite, com medo de dormir e ser pego pelo fantasma. Sua amada achava besteira tudo aquilo, mas tentava dizer de uma forma o mais doce possível, para não deixá-lo estressado, coisa que acontecia frequentemente, até quando estavam juntos. Isso pois ele tinha essa sensação de que alguém o observava a todo momento, e de que algo muito ruim iria acontecer.
       Mesmo com todos os problemas, o dia em que os dois fariam aniversário de dois meses de namoro se aproximava, e agora um já frequentava a casa do outro. A casa dos Bastos tinha uma incrível biblioteca, com títulos que ele nunca tinha ouvido falar, como: A Morte do Chupa Cabra, Ritos Fúnebres do Século XIX, A Mitologia dos Índios, A Árvore que Nunca Cai, entre outros. Muitos eram criações locais, e após pegar A Morte do Chupa Cabra para ler, o garoto descobriu da pior forma a qualidade ruim dos livros.
       Na noite anterior ao aniversário, o casal combinou de se encontrar durante a tarde no lago onde se conheceram, já que Júlio tinha aula de manhã e um jogo importante (como reserva) durante o início da tarde. Ele foi dormir, mas assim que caiu na cama, foi assolado pelo pior de todos os calafrios, um que gelou até a sua espinha. E então, sentiu-se cercado. Ele não podia ver nada, mas sabia que “eles” estavam ali. Tinha recentemente chegado à conclusão de que fantasmas realmente existiam, e sabia que eles estavam o seguindo por algum motivo, só não conseguia descobrir qual. Após acostumar-se com o cerco, ele acabou adormecendo, pois o sono era mais forte do que o medo de que algo lhe acontecesse durante o sonho.
       Uma faca. Um olho vermelho. A faca suja de sangue. O olho vermelho cheio de maldade.
       Acordou gritando dessa vez, mas se acalmou, vendo que estava amanhecendo. Infelizmente, ainda sentia a presença fantasmagórica ao seu redor, talvez esperando a hora certa para atacar. Antes de sair de casa, pegou a foto, aquela que lembrava os bons tempos.
       Passou a aula toda tenso, era como se tivesse uma professora, vinte e um colegas vivos e uma dúzia de colegas mortos. Quase dormiu no meio da aula, mas voltou a prestar atenção quando a professora gritou:
       — FUJA! Disse o motorista, mostrando...
       A turma inteira riu do susto que ele tomou com esse grito da professora na aula de português.
       Durante o jogo, no pouco tempo que entrou, jogou muito mal, pois mal conseguia concentrar-se. Finalmente, chegou em casa, e foi descansar um pouco antes de encontrar sua amada no lago, por mais que gostasse dela, um bom banho e comida vinham primeiro. Quando ele estava acabando de comer, a mãe encontrou a foto no bolso da calça dele e ficou olhando estática, como se ela também estivesse vendo fantasmas.
       “Em pouco tempo, estará tudo terminado”
       Essa frase simplesmente ecoou pela cabeça de Júlio, que nem ouviu o que a mãe falava, aflito e confuso com tudo que estava acontecendo nesses últimos três meses da sua vida.
       “A escolha é sua”
       Vozes ecoavam por todos os lados, seja o que for, estava começando. Enquanto isso, o garoto olhava desesperado para onde ele sabia que existia uma presença invisível, e por um segundo, ele viu um homem de meia idade, com roupas velhas, todo ensanguentado, com uma  faca enfiada no peito, finalmente, todas as outras presenças sumiram e ele disse:
       “Você pode sempre fugir, meu sobrinho-neto”
       O homem desapareceu ao mesmo tempo que a mãe pegou as mãos de Júlio e perguntou o que havia de errado com ele, segurando a foto na mão. Todas as presenças tinham desaparecido, e seus familiares estavam todos na sala, com exceção dos avós, que estavam no andar de cima. Olhando friamente para a mãe, e achando que finalmente tinha entendido o recado dos espíritos, falou:
       — Eu te odeio.
       A mãe ficou alarmada ao ouvir aquilo, e falou alguma coisa, mas aquilo não era importante, a única coisa importante era o que Júlio iria dizer, porque ele sabia que podia fugir, e que ia ser mais fácil, mas que o caminho certo era enfrentar.
       — NÃO ME IMPORTA! Você estragou a minha vida! Você estragou a vida do meu pai! Como ousa segurar essa foto!? Hein, sua vaca suja e egoísta!
       Ele pegou a foto da mão dela. Ela mostrava ele, quatro anos antes, e o pai, numa viagem à Disney World. Amassou aquela foto, enquanto chorava.
       —  Você largou ele, nos trouxe para esse FIM DE MUNDO! E tudo isso por quê!? Só porque ele deu uma pulada de cerca? Por que ele errou UMA ÚNICA E MALDITA VEZ!? Você acha que tem a PORRA DO DIREITO de me separar dele, de me levar pra esse inferno no fim do mundo só por causa dessa sua vontade egoísta de puni-lo!? PORRA!!!
       Carla não conseguia parar de chorar enquanto ouvia aquilo, ela tentou continuar falando, mas ele ainda não tinha acabado:
       — Eu tinha uma vida! Eu tinha um pai que me amava! Eu amava ele, droga! COMO VOCÊ OUSA DESTRUIR E PISOTEAR TUDO, TUDO QUE EU TINHA!?!? Você acha que sofre, sua filha da puta? Sua...
       O punho cerrado de Paula atingiu com tudo o rosto de seu irmão, que caiu no chão.
       — Eu disse que te quebraria a cara se você falasse assim com ela! Idiota! Você não sabe da metade!
       — Sabe o que eu sei? Que minha mãe abandonou os velhos lá em cima e esse lugar, e nunca mais voltou! Mas foi só ter problemas que voltou pra cá, não?
       Então Paula, que se mantivera calma, durante quase todo o tempo, falou:
       — Nosso pai não nos quis – ele olhou assustado, sem saber o que responder, e ela continuou: é isso mesmo, ele não nos quis, eu vi ele falando com a mamãe, o bastardo tem outra família, não sabia? E não foi a mamãe que descobriu ele tendo um caso, isso foi o que ela disse pra te poupar, seu verme! Você é tão desprezível que odiou ela enquanto nosso pai estava com outra, e dando atenção para outras crianças, outra família! Droga, ela sempre precisou do nosso apoio, e você estava pouco cagando pra isso! Tenho vergonha de ser sua irmã, Júlio, quase tanta como tenho de ser filha dele.
       Sem querer acreditar naquilo, ele olhou para a mãe, que confirmava a história somente pelo seu semblante. Levantou-se, chorando e teve que perguntar:
       — Me diga que não é verdade. POR FAVOR, me diga que é mentira, é, não é?
       Ela ficou calada.calada.
       — Droga, malditos fantasmas! – colocou as duas mãos na cabeça – eu entendi tudo errado, os calafrios, a coisa toda, eu deveria... fugir?
       Confuso, só lembrava de Maria agora, só ela conseguiria consolá-lo, assim, saiu correndo da casa, tempo exato para que a mãe tivesse um pressentimento terrível, confirmado assim que olhou no calendário da sala.
       Ele correu até o lago onde encontrou sua amada. Primeiro, contou tudo a ela, e foi confortado por seus abraços, depois, começou a beijá-la como se não houvesse amanhã. Aqueles momentos foram atemporais para ele, pois ele não viu o tempo passar, só soube que quando se deu conta, já era noite.
       Estava tudo escuro, e Maria começou a chorar.
       — Por que está chorando, meu amor?
       — Desculpa, amor! Desculpa!
       — O quê?
       — Desculpa, amor, era eu ou você! Desculpa!
       Braços fortes puxaram Júlio, e ele se viu cercado por homens em trajes cerimoniais. Um deles carregava uma faca, “A Faca”, aquela do pesadelo da noite anterior. Era o pai de Maria, ele falou:
       — Somente Deus sabe como estou feliz hoje! Somente ele, amigos. – pausa emocionada –  Minha linda filhinha havia sido escolhida como sacrifício! Mas ela é tão astuta! Convenceu esse infeliz a tomar o seu lugar!
       — QUÊ? TOMAR O LUGAR NO QUÊ?!? ME SOLTEM!!!
       — Ah, permita-me explicar, abençoado jovem. Neste lago, vive o Anti-Cristo, o Belzebu, o Demônio, chame-o como quiser, e nesse exato dia, a cada três anos, um morador da região tem de ser sacrificado para que ele não retorne à Terra. Minha doce filha foi escolhida, há dois meses atrás, e estava aqui se lamentando quando encontrou o pateta perfeito para tomar o seu lugar – seus olhos brilhavam insanamente – achei que meu Deus tinha me abandonado, mas ele só tinha enviado minha doce e amada filha em uma missão em seu nome. E hoje à noite, assim como os índios fizeram nos últimos milhares de anos, acreditando que algum deus do mal vivia nesse lago, faremos o sublime sacrifício. Olhem, já está na hora!
       O olho vermelho aparecia no lago. Era enorme, quase do tamanho do lago todo, e demonstrava pura maldade. O garoto quase morreu de medo só de olhar para seu provável destino. Nisso, várias pessoas apareceram. Todas elas tinham uma faca cerimonial enfiada no peito, todas elas estavam mortas. Entre elas, o homem que o garoto da cidade viu duas vezes antes, seu falecido tio-avô. Tudo fazia sentido agora. Eles sabiam que ele seria o próximo, e ele tentava lhe avisar, mas não conseguia, ele o mandou fugir dali, mas ele entendeu totalmente errado. Agora tudo estava perdido, “estava tudo terminado”, como havia dito o fantasma alguns minutos antes (ou seriam horas? Já era noite).
       O homem vinha trazendo a faca, com seu sorriso insano, quando uma voz ecoou pela clareira do lago:
       — Soltem meu filho!
       Era Clara, que vinha com uma faca de cozinha, tentando salvar o filho, mas foi facilmente dominada, Maria não parava de chorar, vendo o que tinha causado. Sensibilizado pela dor de uma mãe, o mestre de cerimônias falou:
       — Minha filha também seria sacrificada  e eu sei como isso pesa no coração, por isso, te darei uma escolha, minha boa vizinha, sua vida pela dele.
       Ela não pestanejou em concordar, sob os olhares reprovadores do fantasma de Ricardo, que via sua querida sobrinha acabar da mesma forma que ele, antes de desaparecer, ele disse para seu sobrinho-neto:
       “Lembre-se do sacrifício dela pelo resto da vida, é tudo culpa sua”
       A faca logo atravessou o peito dela, e ela foi jogada no lago, acalmando o Demônio. Pelo resto da noite, Júlio chorou sozinho à beira do lago, recusando a companhia, e o amor de Maria, sua ex namorada. Perdido em tanto arrependimento por ter tratado tão mal a mãe que lhe amou tanto, pensou inclusive em tirar a sua própria vida, mas resistiu e acabou voltando pra casa na manhã seguinte.
       Na manhã seguinte, o avô explicou tudo nos mínimos detalhes, inclusive que os métodos de escolha do sacrifício são sagrados e nem o mestre de cerimônias pode mudar a pessoa que vai ser sacrificada, assim, como o mestre era pai do sacrifício, ele só não trocava ela por acreditar ser a vontade de Deus, mas como ela achou alguém, um desconhecido, ele quebrou as regras, e no final, seu coração de pai falou mais alto e ele as quebrou mais uma vez. Ainda foi dito que provavelmente, ele perderia o cargo e seria assassinato em pouco tempo.
       Quanto ao monstro no fundo do lago, pouco se sabe sobre ele, só o que as lendas indígenas dizem, e que nos tempos que ele andava pela terra, destruía tudo por onde passava.
       Nesta mesma manhã, os três irmãos deixaram a casa, acusando o velho de saber a verdade o tempo todo (pois espíritos dos sacrificados normalmente tentam ajudar aqueles que são escolhidos) e nem tentar ajudar. Eles voltaram a morar na cidade, trabalhando e pagando as contas para se sustentar.
       Toda noite, desde então, Júlio tem pesadelos com o dia do sacrifício de sua mãe e com a última frase de seu tio-avô. Com esse peso na consciência, ele teria de seguir até o resto dos seus dias.

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