quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O Caderno

Esse meu novo conto começou de uma inspiração momentânea, e eu inclusive achei que não seguiria em frente com ele, após ter parado de escrever pela primeira vez. Mas aqui ele está, pronto.
Sem mais enrolação, espero que gostem do conto.






O Caderno

        Era uma tarde chuvosa, como todas as outras daquele sombrio mês de julho. Existem pessoas que acham que a chuva é uma das coisas mais maravilhosas do mundo, ao passo de que outras a consideram algo frio e depressivo. Isso não significa nada, pois todos tem opiniões diferentes, baseadas nas suas percepções do mundo.
        Alguns conseguem ver cores mesmo na mais sombria das noites, observam a luz do luar maravilhados com o mundo que vivem, enquanto outros podem estar em uma festa cheia de pessoas, enxergando tudo como se um filtro preto e branco estivesse passando em frente aos seus olhos.
        Cores. Não haviam cores na vida daquele garoto.
        Todos os dias a mesma rotina, acordar cedo de manhã, comer (o café era sempre amargo, e as torradas nunca tinham gosto), e andar até a escola. Ele estudava no terceiro ano do ensino médio, e ficava a maior parte do tempo entediado. O que mais se esperar, afinal? Ele era mais inteligente que a média, e todos sabem como as aulas eram arrastadas, visando ajudar os menos afortunados mentalmente.
        Essa era a sociedade retardada em que o garoto vivia, nivelada por baixo, encharcada de ignorância e de preconceito. Sinceramente, ele não ligava, só desdenhava de todos aqueles idiotas. Não tinha amigos na escola, mas não pelos mesmos motivos que levam as pessoas a serem solitárias, esses são os motivos de perdedores. Ele não precisava de amigos.
        Depois da aula, ele normalmente ia para casa e após isso, ao curso de inglês que seus pais pagavam. O curso não era tão entediante quanto a escola, mas estava longe de ser minimamente motivante, também.
        O próximo passo era voltar pra casa e ficar no computador, esperando o tédio virar sono. E quando isso finalmente acontecesse, dormir, mas sem sonhos, ele nunca sonhava. Na verdade, sonhava sim. Todos sonham. Mas o fato de ele não lembrar nem ligar para o que acontecia, simplesmente fazia-o aceitar que não sonhava, algo muito mais fácil do que se estressar com tamanha futilidade.
        Aquela tarde chuvosa teria sido só mais uma tarde chuvosa para aquele jovem loiro de dezessete anos. A vida continuaria sempre a mesma, tediosa e incolor, mas algumas vezes na vida, chega-se em pontos-chave que decidem todo o futuro.
        Essa história começa em um desses pontos.
        Vermelho. Essa era a cor do vestido dela. Um longo vestido, casual, mas ainda assim belo no corpo daquela jovem. Seus cabelos eram castanhos e esvoaçantes, lisos e vívidos. E quando ela se virou, azul. Dois belos olhos azuis, penetrantes e misteriosos.
        Aquele olhar divertido e um tanto infantil pousou no garoto por uns instantes, e ela deu uma leve risadinha. O corpo dele ficou paralisado diante da estrada. Em um momento, todas as coisas ao redor deles ficaram coloridas, as árvores ficaram mais verdes, os carros que passavam na avenida a alguns metros dali pareceram ganhar novas tonalidades, enfim, o mundo sorriu para ele.
        Seria aquela menina a mãe dos filhos dele (filhos que ele nunca sonhou ter), aquela que viveria uma vida feliz ao seu lado até que a morte os separasse? Então ela se virou, e tudo voltou a ficar escuro e cinzento de novo. Sem pensar duas vezes, ele saiu correndo atrás dela, derrubando o guarda-chuva no caminho.
        Após perdê-la de vista, andou por quadras e mais quadras, sem saber realmente o que estava fazendo, só maravilhado com a oportunidade de vê-la mais uma vez. Mas o tempo passava e nada de reencontrá-la, após cerca de meia hora, ele se conformou. A cidade era grande, e provavelmente os dois nunca mais se encontrariam. Começou a achar que fora um sentimento passageiro, e conforme voltava para o caminho certo, tudo voltava à normalidade.
        Quando ele chegou no ponto onde viu a bela garota, porém, sentiu uma incrível vontade de passar por onde ela estivera, e assim o fez. Como já previa, nada aconteceu. O que ele nem sequer sonhava, era que o ponto-chave na sua vida não fora aquela garota, que amanhã não significaria nada para ele. O ponto estava prestes a aparecer. E apareceu assim que ele olhou para a parada de ônibus.
        Um caderno preto estava lá.
        Ele era um caderno pequeno, daqueles modelos com capa dura e aproximadamente umas cem páginas. Não havia nada escrito em sua capa, nem na frente, nem atrás. O jovem entediado nunca soube o que o levou a dirigir-se até a parada e pegar aquele caderno. Talvez tenha sido uma decisão aleatória, ou talvez ele ainda estivesse mexido com a tal garota dos olhos azuis, e pensou que o caderno pudesse ser dela. Se ele tivesse parado para pensar, teria chegado à conclusão que adolescente alguma do sexo feminino usaria um caderno sem graça como aquele. O mais interessante, foi que ele não abriu o caderno, simplesmente o colocou na mochila e foi para casa. Todos esses pontos formam o momento que decidiu a vida dele. Se tivesse aberto o caderno, e visto o que tinha dentro, provavelmente nunca teria o levado dali. Se não voltasse para ver o local onde a misteriosa garota estava, nunca teria visto o caderno.
        A casa dele ficava numa zona nobre da cidade e tinha dois andares. Era branca, uma cor apropriada. Após colocar (jogar) as roupas molhadas de lado, ele olhou para a cozinha e fitou o pai, que olhava televisão.
        — Olha, Pietro, blablablá... — Depois das duas primeiras palavras, o garoto ignorou o pai, vendo pelo que passava pela tela, era mais uma daquelas vezes em que pai ainda achava que ele era criança ou retardado e se interessava por filmes de comédia como aquele ou sei lá. O fato de ter um golden retriever como personagem provavelmente principal no filme contribuiu para fazê-lo subir as escadas até seu quarto, ignorando totalmente o pai.
        Ele sabia que para alguém de fora, pareceria que ele era um cara frio e sem coração, mas tinha seus motivos para achar o pai um completo idiota. O motivo principal? Seu pai era realmente um grande idiota.
        Jonas Harrygann estava no auge dos quarenta e poucos anos, mas tinha uma cara acabada e velha. Beberrão convicto e ex-jogador de futebol, poderia ter tido uma vida perfeita, mas as noitadas e a bebida lhe levaram ao fundo do poço. Num lugar escuro e deprimente ele encontrou Marta, mãe de seu filho. Ela não foi o amor da vida dele, e muito menos ele o da dele, mas ambos estavam tão profundamente afundados na bosta que um consolou o outro, e eles foram pra cama. Dessa primeira vez, sem camisinha, surgiu Pietro, e dessa responsabilidade que nenhum dos dois queria, surgiu um casamento.
        Com o tempo, o ex-jogador conseguiu uma chance para trabalhar em uma grande empresa, e teve uma nova vida junto de sua família. Podia tê-los largado, se fosse um homem egoísta, mas não era má pessoa, simplesmente era um idiota e nada mais.
        Ninguém podia negar que aquele homem amava eles, mesmo que amasse mais ainda uma boa dose de uísque. E assim uma família foi formada, aparentemente uma família feliz. A esposa diria isso que amava o marido e estava satisfeita para qualquer um, e que as surras nela e no filho, quando o homem chegava bêbado em casa, eram as coisas mais comuns do mundo, além de serem “inofensivas”.
        Agora, aquele que pensar que Pietro era frio com seu mundo incolor por causa disso, estaria redondamente enganado. As surras nunca lhe incomodaram mais do que pela dor causada. E era simplesmente dor, passava. Claro, ele apanharia de novo, mas se aquilo era a forma de o fracasso do pai sustentar a casa e dar-lhes conforto, que fosse. Ele não se importava com as lágrimas da mãe ou com ela implorando para que o robusto homem parasse, ele não ligava para nada daquilo.
        Passou algumas horas na frente do computador até cansar daquilo e deitar na cama. Do lado de fora, chovia cada vez mais forte. Antes de dormir, ele pensou na garota, e olhou o caderno preto, mas fechou os olhos e apagou até a manhã seguinte.
        Acordar, comer, sair, frequentar a escola, almoçar, ir no curso, voltar pra casa. Tudo estava vazio quando ele chegou. A chuva não parava de piorar, e para melhorar o dia, a internet tinha caído e não voltava. Sentando-se pesarosamente sobre a cama, ele olhou de relance para o curioso caderno preto e então a imagem da linda garota lhe veio à cabeça. Estava toda escura e descolorida agora, como tudo que ele via, mas ele não ligava (em algum lugar no fundo de sua alma, ele sabia que sentia falta das cores). Logo nem lembraria daquela estúpida garota, afinal isso não era um filme romântico, em que ele ficaria suspirando no quarto, imaginando o dia em que fosse vê-la novamente, isso era para perdedores.
        Mas aquele caderno preto lhe chamou a atenção. Como ele não tinha percebido antes? Tinha algo “chamativo” naquele caderno. Ele só não sabia dizer o que exatamente. Sentindo uma ponta de curiosidade, e gostando disso (era um sentimento raro, melhor aproveitar), decidiu abri-lo.
        “Anderson Mateus Júnior, 22/07/2011, 2479547”
        Era só isso que constava na primeira página, escrito em letras grades, que pareciam com as de um computador, apesar de terem sido escritas à caneta.
        Ele não sabia o motivo, mas sentiu um calafrio ao ler aquilo. Na folha seguinte, outro nome, outro número e outra data: 24/07/2011. E assim continuava, um nome, número e data por página, até  última página, onde podia-se ler:
        “Rafaela Durden, 05/09/2010, 4902845”
        E era simplesmente isso que dizia. Mas o que diabos era aquilo!? Ele não compreendia, e de alguma forma estranha (e talvez até um pouco obsessiva, ele descobriria depois), aquilo o interessou. Primeiro ele ficou por mais de uma hora olhando aqueles nomes, vendo se reconhecia algum, mas não teve sucesso inicialmente. Depois começou a pensar nos números, e finalmente quando sua internet voltou, pesquisou no Google por horas. Mas tudo parecia infrutífero. Lá pelas duas da madrugada, cansado e frustrado, foi dormir.
        O dia seguinte foi dia 23, um sábado. O que lhe daria mais tempo livre para gastar pensando no tal caderno preto. E qual não foi a surpresa de Pietro ao notar que a primeira página do livro tinha mudado, e agora, como se ela tivesse sido arrancada, uma tal de Amélia do dia 23/07/2011 estava lá no início. Primeiro ele procurou a família, e perguntou se alguém mexeu nas coisas dele, claro que ninguém tinha feito nada.
        Ele só teria uma surpresa mais reveladora ainda no final do dia, quando em um momento de raiva, jogou o livro na parede e este abriu na última página, mas não era mais Rafaela Durden que estava lá, era Jackson Thomas, ainda no dia 05/09/2011, de número 1992019. Ele pensou que só poderia estar maluco, pois tinha certeza que era aquela mulher a última da lista.
        O final de semana passou, chato como sempre, e o livro parecia continuar fazendo a mesma coisa, de simplesmente apagar as pessoas depois da data colocada ao lado delas e então, colocar uma nova pessoa no final. Era óbvio que era algo como uma contagem regressiva, mas para o quê? Em menos de uma semana, ele teria as respostas para essa pergunta.
        Segunda-feira, dia 25. A chuva simplesmente não dava trégua, e as autoridades falavam do risco de inundação caso ela ficasse forte demais. Pietro enfrentou a mesma rotina de sempre, com o tédio habitual. Porém, na aula, ele ouviu uma coisa que lhe interessou. Na verdade, duas colegas deles estavam fofocando sobre “um carinha muito lindo e gostoso, que também era um fofo”, um tal de Tiago Hoffster. Inicialmente, ele não deu bola, mas um alarme soou dentro de sua cabeça e ele percebeu que aquele era um dos nomes da lista.
        Qualquer pessoa normal teria tido um pouco mais de cordialidade em perguntar sobre ele, mas esse era Pietro Harrygann, que se colocou entre as duas e perguntou, seco:
        — Quem é Tiago Hoffster e onde posso encontrá-lo?
        Normalmente, as garotas teriam rido e feito alguma piadinha questionando a sexualidade do garoto, mas a cara séria e um tanto quanto assustadora dele as impediu de falar qualquer outra coisa que não fosse:
        — Sala 351, andar de cima. — Com uma expressão assustada em seus rostos pálidos. Isso foi o suficiente para ele ir fazer uma visitinha nessa turma, só para descobrir que o tal carinha lindo não tinha aparecido na escola
        “Deve ser só mais um burro que já está rodado”, pensou. E assim o dia prosseguiu normalmente.
        No dia seguinte, nada do garoto de novo. E na quarta-feira, a mesma coisa. A data no lado do nome dele era da sexta-feira, ou seja, ele só tinha dois míseros dias para descobrir sabe-se lá o que sobre o tal cara da lista.
        Como quinta-feira ele não tinha aparecido de novo na escola, o garoto criou coragem e saiu perguntando dele para todos na turma, que como ele já imaginava, não foram muito úteis. Um fato sobre a vida, é que pessoas comuns estão cagando pra você. Eles normalmente não dão a mínima pra quem está ao lado, preocupam-se somente com as suas vidas e as das pessoas que lhes são queridas. Então, quando um garoto levemente assustador, e um tanto irritado chega fazendo perguntas pessoais demais, todos tendem a não gostar dele.
        Ele percebia os olhares de: “Quem diabos é você?”, “Como ousa ser tão abusado?” e “Eu não vou contar porra nenhuma para um idiota como você”, mas não ligava, a curiosidade era muito grande. Tão grande que ele chegou ao ponto de roubar papéis na direção da escola para descobrir onde o garoto morava.
        Ele entendia que já estava saindo dos limites, mas aquilo era a única que lhe interessara tão fortemente em anos, então valia os riscos. Ele estava decidido a visitar o número 8258811 naquela sexta-feira.
        Desnecessário dizer, mas estava chovendo naquela manhã. Ele tinha matado aula para ir na casa do rapaz, que ficava do outro lado da cidade. O local era um casebre pobre e mal cuidado, com musgo na calçada velha em sua frente. Ele parou por um instante e sentiu-se excitado, sabendo que naquele dia, tudo finalmente faria sentido, ele não poderia estar tão enganado. Mas quando preparava-se para subir na grama de dentro do terreno e bater na porta, ouviu um grito de uma mulher, que parecia estar apavorada.
        Segurou-se com todas as forças para não invadir a casa, pois aquela sensação de que a verdade estava lá dentro era forte demais. A porta se abriu, e lá de dentro saiu uma mulher morena e baixa, de meia idade, que estava aos prantos, ela gritou e saiu correndo, caindo aos pés de Pietro após resvalar no musgo na frente da casa.
        — Me ajude, por favor, me ajude! — Disse ela, enquanto continuava a chorar.
        Feliz com a oportunidade, o garoto só conseguiu concordar, e quando chegou dentro da casa, viu um belo rapaz, alto e de olhos verdes, grandes e vidrados no nada. Olhos de um morto.
        Ele tinha se enforcado na cozinha da casa. A mulher não sabia o que fazer diante da morte de seu filho, mas seu convidado estava emocionado. Na verdade, ele sentia realmente excitado com aquilo. Diante dele, estava um cara morto. Que morreu no dia que estava marcado no caderno preto.
        Horas depois, o garoto parou sentado em uma calçada, molhado pela chuva que caía fraca, mas constante. Milhares de coisas passavam pela cabeça dele. Ele finalmente havia descoberto que na verdade, aquele era um “livro dos mortos”. Que dizia o dia exato em que tal pessoa morreria. Ele poderia fazer uma fortuna com esse livro, mas não queria isso. O que ele realmente desejava, era poder observar aquele espetáculo. Olhar para as pessoas na rua e saber que dia a vida insignificante delas acabaria, olhar o momento da morte de algumas, e deliciar-se com o fim da vida alheia.
        Aquela era a coisa mais emocionante que acontecera em toda a sua vida. Ele não precisava de mais nada para concordar, acabara de passar em um cemitério onde encontrou a lápide de  Anderson Mateus Júnior, falecido exatamente no dia 22/07/2011. Não sabia se era o destino ou talvez algum poder do livro, mas encontrar aquela lápide tão aleatoriamente lhe deu a certeza de que tinha um livro dos mortos em mãos.
        Daquele dia em diante, a vida daquele estudante do terceiro ano nunca mais foi a mesma.
        Na semana seguinte, viu três mortes. A primeira foi de uma garota em um acidente de carro, ele quase chorou enquanto via o corpo dela dançar no ar depois de ser atingida por um jipe preto em alta velocidade. Ele a encontrara totalmente ao acaso, enquanto ia para a escola. Aquilo lhe motivou a pesquisar mais e mais as pessoas que apareciam no livro. Começou a realmente achar algumas, essas eram perseguidas até a morte.
        O primeiro desses casos foi o de um jovem homem negro, que apesar de ser um humilde trabalhador, foi confundido com um bandido pela polícia e levou cinco tiros (os porcos nunca se importavam com gente assim, afinal). A seguinte foi uma garota realmente bonita. Loira, pele macia e seios fartos. Após ser perseguida sem notar o dia inteiro, ela foi atacada por um estuprador, que no meio do estupro, percebeu a presença de mais alguém e cortou a garganta da mulher, que caiu ao chão sem vida, virada em uma mancha de sangue vermelha e com suas calças arriadas (se achava tão bonita e terminou assim, não é?).
        Existia algo profano em ver toda aquela gente morrer. Ver o olhar vazio do bonitão da sala, o lindo balé que uma garota dançou no ar após ser atingida por um filho da puta sem nome, ver um trabalhador honesto perder a vida por um erro de alguém que é pago para protegê-lo, e seu favorito: ver a impotência de uma mulher que foi violada e morta de maneira tão humilhante.
        E assim foram seguindo os dias. Ele parecia saber rastrear as pessoas cada vez melhor, e sua vida toda se baseava em levar aquele caderno de um lado para o outro, correndo atrás de pessoas que morreriam.
        Ele realmente se divertiu durante um tempo, até o momento em que na última página do livro, leu isso:
        “Jonas Harrygann, 28/10/2011, 6066719”
        Em pouco tempo, seu pai morreria.
        O que para muitos seria o choque da realidade, abriu um grande e insano sorriso na cara de Pietro, além de ver toda aquela gente inútil e patética morrendo, poderia ver de camarote a morte do pai, o homem que era um completo idiota.
        A espera não tirava o brilho das mortes de sempre. Afinal, alguém que morre no meio de uma partida de futebol, após marcar o gol da vitória para seu time na final do campeonato amador, é sempre algo “emocionante”.
        Ver pessoas morrendo só provava a ele como todos naquela sociedade eram desprezíveis. Todos se achavam importantes antes do fim, pensavam que o mundo não fosse seguir em frente sem eles, mas sempre amanhecia no dia seguinte. Ele achava que os humanos não entendiam como são miseráveis perante coisas tão belas como a morte. Os únicos que mereciam o seu respeito eram aqueles que aceitavam o destino inevitável de braços abertos. Como um senhor chamado Bill, que ele viu morrer dois dias antes da “data especial”, a morte do papai. Com ralos cabelos brancos e a visão quase que totalmente perdida, o velho Bill comemorou o seu aniversário de noventa e dois anos no asilo. Contou para seus colegas e para os ajudantes do serviço comunitário (entre os quais o garoto do caderno estava infiltrado) como estava satisfeito com a sua história de vida. Foi uma longa e entediante história, na verdade Pietro queria que ele engolisse uma mosca e morresse engasgado logo, mas não, ele acabou seu discurso e uma singela lágrima escorreu por sua face enrugada.
        Então ele suspirou e morreu satisfeito. O garoto podia não ter gostado minimamente do homem, mas respeitou a forma como ele morreu. Aquela sim era a forma digna de se acabar. Ele lembrou dessa morte momentos antes da do pai, enquanto olhava televisão com seu velho, ansioso pelo que aconteceria.
        Foi tudo rápido e belo. O homem foi buscar um uísque no armário, e no meio do caminho, caiu no chão, segurando o peito com força. Sim, ele tinha problemas cardíacos, seu filho inclusive apostava que ele fosse acabar assim, mesmo. Enquanto ele se contorcia no chão e tentava chamar pelo seu estimado filho, este só  o olhava sarcasticamente, aproveitando cada momento daquele “entristecedor” final. Quando o homem ia perdendo a consciência pela última vez na vida, o garoto se abaixou até ele e sussurrou no seu ouvido:
        — Ninguém nunca te amou, seu perdedor.
        E então Jonas morreu, com um olhar de extrema tristeza e espanto em seu rosto, nessa hora, o filho calmamente chamou a ambulância, que chegou tarde demais.
        Passou-se uma semana desde o ocorrido, e toda a família estava de luto pela morte tão inesperada do patriarca, mas o fato de ele ter seguro de vida alegrou imensamente Pietro, que era obrigado a esconder-se dos demais, devido ao seu estado radiante de felicidade.
        Dois de novembro de 2011, Dia dos Finados.
        Como sempre, o garoto do caderno acordou feliz, disposto a achar uma tal de Maria Reynolds. A busca foi bem sucedida, e ele viu a jovem de dezessete anos ser morta em um assalto na frente do túmulo de sua mãe, uma coincidência engraçada. Chegando em casa, no final do dia, ele lembrou que não tinha olhado as últimas páginas do caderno recentemente e foi checar as novidades, quando sua espinha gelou:
        “Pietro Harrygann, 31/12/2011, 1901323”
        Aquilo não podia estar acontecendo. Ele só poderia estar sonhando! Como o nome dele estava ali? Será que não era outra pessoa!? Mas ele sabia no fundo que não, pois cada vez que lia aquele nome, sentia um calafrio tão forte que sabia que a sua alma poderia congelar se fitasse aquelas palavras por muito tempo.
        Jogou o caderno para o lado e deitou na cama, esperando dormir e acordar em um mundo novo. Isso não aconteceu, a única mudança foi que ele passou de último para antepenúltimo na lista negra do destino.
        Não queria mais sair de casa, não queria mais ver gente morrer.
        Ele até tentou fazer isso alguns dias depois de ver aquele nome, que avançava página por página conforme os dias passavam, mas tinha perdido totalmente o brilho. Quando ele viu uma estrangeira chamada Mary cair e bater de cabeça em um hidrante, morrendo de traumatismo craniano, só conseguiu pensar em como sua morte poderia ser idiota.
        Na verdade, ele agora passava os dias em medo, não fazia mais nada na escola nem em lugar algum, e parecia que as pessoas mortas da lista pareciam segui-lo, pois morriam sempre perto dele. Ele começou a achar que eles estavam o cumprimentado, por em poucas semanas, ele seria o próximo.
        Pietro chegou ao fundo do poço dez dias antes do seu prometido “último dia”, em uma quarta-feira quente e sufocante. A criança que morreria atropelada naquele dia lhe olhou fundo nos olhos antes de atravessar a rua e ser arrebentada por um caminhão de lixo, eu quase ouviu ela dizendo:
        — Venha comigo... Vamos dançar a dança da morte.
        Ele então começou a ouvir isso repetidamente, cada vez mais forte, cada vez em intervalos menores. Faltando cinco dias, tudo que Pietro conseguia ouvir quando alguém falava era aquela voz infantil, inocente e convidativa.
        — Vamos Pietro! Venha comigo, poderemos brincar durante toda a eternidade! Não é ótimo? Venha dançar, venha para a dança da morte, amigo.
        Agora ele tinha sonhos, na verdade, eram pesadelos. Morria umas trinta vezes por noite, e quase que sobrenaturalmente, lembrava de cada uma como se fosse a verdadeira. Depois ele começou a ver as pessoas mortas de relance. Faltando três dias via vultos. Dois dias e via reflexos nos espelhos. No dia 30 ele olhava para a cara das pessoas e todos pareciam convidá-lo para dançar.
        Trinta e um de dezembro de 2011, último dia do ano.
        Ele correu a madrugada inteira pelas ruas. Não sabia mais onde estava, ou o que estava fazendo. Pra cada lado que olhava, fantasmas que lhe deram tanto prazer antes apareciam, sem contar as vozes. Um milhão de vozes o chamavam, todas elas queriam dançar, se divertir eternamente, mas tinha uma pequena condição: você tinha que morrer primeiro.
        O dia não foi mais tranquilo, ele não comeu ou descansou durante parte alguma do dia, simplesmente vagava sem rumo, como um zumbi que não queria aceitar sua condição atual. As vozes se intensificavam conforme o sol ia se pondo, ele agora via reflexos de gente morta em qualquer janela que olhasse, o desespero era tão sufocante que ele tinha vontade de gritar, de pedir ajuda a um deus que ele sabia não existir, a qualquer pessoa, coisa ou entidade, ele não conseguia mais lidar com aquilo, e se não morresse logo, iria enlouquecer certamente.
        Uma hora cansou de correr e olhou para o relógio, eram onze e meia da noite, e as ruas estavam desertas.
        Olhou para o outro lado da rua e congelou, dessa vez, ele se mijou nas calças.
        O fantasma do garotinho atropelado ficou observando-o sorridente, e então disse:
        — Desista, senhor, já está na hora, vamos brincar!
        O homem negro que fora assassinado por policiais sorriu e estendeu os braços.
        A estrangeira que bateu com a cabeça no hidrante tentou sorrir com a cara deformada e cheia de sangue, enquanto gemia de forma fantasmagórica, tentando ser gentil.
        O velho da história chata disse:
        — Vamos lá, filho, chegou sua hora, vamos dançar! Vamos?
        O garoto que se matou, dos olhos vidrados, colocou a mão no ombro do garoto, e este deu um pulo. Então ele falou:
        — Ei, eu sei que você ficou excitado em me ver morto, mas acredite, MORRER É MAIS EXCITANTE AINDA!
        Finalmente a mulher estuprada o abraçou voluptuosamente e se encostou nele, que percebeu que ela não usava a calças:
        — Gosto de você, gracinha, mas se quer uma dança QUENTE, comigo, tem que morrer. Tem que morrer, tem que morrer, tem que morrer...
        As vozes iam se juntando todas, e formando um coro:
        — TEM QUE MORRER, TEM QUE MORRRER, TEM QUE MORRER...
        Todos os corpos iam se amontoando no rapaz, que em puro desespero, gritou:
        — PAREEEEEEM!!!! POR FAVOR, PAREM!!!!! EU NÃO SUPORTO MAIS!!!
        Então um vento gélido passou pelo lugar e todos eles se foram. Pietro não ficou surpreso ao ver onde estava. Na parada onde encontrou o caderno preto.
        Começou a chuviscar, e ele respirou profundamente, perguntando-se se estava salvo. Quando uma voz doce e melosa disse:
        — Olá de novo, Pietro.
        Ele se virou e viu que era ela, a garota do vestido vermelho. Porém, hoje ela não estava colorida. Vestia um belo e caro vestido negro, e seu cabelo castanho parecia mais escuro. Os olhos azuis eram quase cinzas e o guarda-chuva que ela usava era negro também, assim como a cor de seus lábios.
        Se da última vez ela parecera encantadora e ingênua, dessa vez ela parecia assustadora e sábia.
        — QUEM É VOCÊ? O QUE QUER COMIGO? — Disse ele, morrendo de medo.
        — Eu sou a Morte, criança. E hoje é o seu dia, — Ela deu uma risadinha envergonhada — Você vai dançar comigo.
        Ele gritou horrorizado, mas se ainda existia algo são na cabeça dele, essa parte tomou conta por um instante e perguntou:
        — Por quê!? Por que, Morte!? POR QUE EU?
        Ela franziu os lábios e então sorriu, um sorriso assustadoramente bonito. Seu sorriso fechou, ela olhou friamente para Pietro, falando:
        — Eu te dei uma segunda chance. Naquele dia que você me viu nesse mesmo lugar, você iria morrer, se não parasse para me olhar, teria sido atropelado por um carro e  teria morrido no inverno.
        Ele permaneceu calado, incrédulo. Queria perguntar tantas coisas, talvez barganhar por sua vida, mas aquele olhar imponente e misterioso dela petrificaria até o mais corajoso dos homens.
        — Fiquei com pena de você. Existem muitas pessoas com vidas tristes, mas você? Você é o pior de todos. Você não sente, não vive, não vê as cores que estão ao redor de você no mundo, não vê a beleza que é esse planeta.
        Outra pausa, ele se sentia derrotado, e decidiu simplesmente esperar.
        — Te mostrei um mundo colorido, te mostrei o amor. E mais importante, eu te dei Meu Caderno. Sim, mexi nele para que aparecessem só aqueles que morriam na cidade, mas mesmo assim, deixei-o em suas mãos, te encaminhei para ver a morte por você mesmo. Mas o que você fez?
        Quieto novamente.
        — Você GOSTOU! — O grito dela fez Pietro cair no chão — Achou divertido ver as pessoas morrerem, e agora elas te assombram! Mas não fui eu quem as enviei, você fez isso, toda essa loucura saiu da sua cabeça, você é DOENTE, PIETRO HARRYGANN, teve a chance de ter uma NOVA VIDA e abandonou tudo... Bem, agora eu irei te levar.
        Pietro levantou-se bruscamente e decidiu que enfrentaria a Morte, ele não morreria em 2011! Saiu andando para o meio da rua, onde a Morte estava e foi atingido em cheio por um carro.
        Dor, medo e solidão. O garoto sentiu tudo isso naquela hora, enquanto sentia o sangue sair por sua boca. Um homem saiu do carro e começou a falar, mas estava ficando tudo escuro e borrado para o atropelado. A dor foi acabando aos poucos, e a Morte se aproximou:
        — Eu vou te levar, meu querido.
        Ele nem sequer teve forças para resistir quando a mulher abaixou-se até ele e lhe deu um beijo de despedida. Então tudo ficou preto para Pietro Harrygann, para sempre.
        Meia noite, os fogos coloridos estouravam no céu, e todas as pessoas comemoravam o início de 2012, com novos sonhos e futuros, sem fazer ideia do que vinha pela frente.
        No alto de um prédio, a Morte olhava a multidão e segurava seu caderno da morte, desviou o olhar pra ele, abriu-o e então suspirou, olhando para o céu. Finalmente falou, para si mesma:
        — Eu vou ter muito trabalho este ano.

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