terça-feira, 31 de agosto de 2010

O Medalhão Roxo

 Esse conto é sobre sorte, azar e as consequências que o excesso de um deles pode causar. Quando comecei a escrever, só queria postar algo novo no blog, mas conforme fui avançando na trama comecei a gostar muito mais da história.
Enfim, acho que consegui um bom resultado, mas o melhor jeito de descobrir se estou certo é ler por você mesmo.



O Medalhão Roxo

        -Surpresa!
        As luzes se acenderam e subitamente pessoas apareceram dos cantos mais improváveis da casa. Renato foi totalmente surpreendido, quase caindo para trás.
        -Ei, pessoal, vocês me assustaram!
        Todos riram alegremente.
        Trinta de Agosto. Para a maioria das pessoas no planeta Terra, essa era só mais uma segunda-feira como todas as outras: trabalho, escola, a chatice de sempre. Mas para o jovem adulto ao qual essa festa surpresa de aniversário fora feita, esse dia nublado marcava um novo período na sua vida. Mas não somente pelos motivos banais que ele pensava inicialmente, e sim por questões muito mais profundas do que qualquer mortal pudesse sequer imaginar.
        -Ai, eu mal consigo acreditar que o meu nenê já virou um homem! - dizia uma mulher na meia idade com um vestido amarelo e o cabelo loiro preso por uma longa fita, que combinava com o vestido.
        -Ah, mãe! Você está me envergonhando na frente dos convidados! - disse Renato, todo envergonhado. Suas tias riram, e uma delas apertou sua bochecha, coisa que ele odiava que fizessem, dizendo: “Mas que gracinha!”, coisa que ele odiava que dissessem, principalmente na frente dos seus poucos amigos.
        Dezoito anos, a idade mágica para os garotos, quando se vira um homem! Sabe, você agora pode ser preso. Tantas coisas divertidas pela frente! Poder dirigir, deixar de ser tratado como uma criança. O garoto esperava ansiosamente por tudo isso. Na verdade, ele tinha uma visão romântica desse aniversário, esperando que tudo mudasse, como num passe de mágica. Se ele estava errado ou certo, pouco importa, pois não é sobre isso que essa história trata.
        Treze pessoas estavam na festa: o aniversariante, sua mãe, seu pai, sua irmã Lisa, as tias Varna, Tatiane, Clarice e Helena, acompanhada por seu marido Paulo, com sua filha Marina, e os três únicos amigos do garoto, Gago, Ranhento e Maria. Era, acima de tudo, uma comemoração modesta, pois mesmo com todo o trabalho suado dos pais do garoto, a família ganhava muito mal, e os pais não queriam que os filhos trabalhassem antes de terminar os estudos.
        Três dias antes o pai de Renato tinha discutido muito com Lisa, pois ela queria muito ser vendedora em uma loja de calçados, estudando de noite, mas o pai, protetor como sempre, rejeitou a ideia na hora, pensando no futuro de sua amada filhinha.
        Em cerca de três horas de festa, todas as tias já tinham ido embora, e a última delas, tia Helena, estava se despedindo da família:
        -Ah, que linda festa, querida! - disse ela, dirigindo-se à dona da casa.
        -Sim, sim, meu amor merece tudo do bom e do melhor. - respondeu a outra, olhando ternamente para seu filho.
        Renato já estava cansado daquilo. Tinha feito dezoito anos e continuava a ser tratado como uma criança! Por um segundo, duvidou da “mágica dos dezoito”, mas sua depressão foi interrompida pelos beijos da tia, que se despedia dele. Assim, só ficaram na casa a família dele e seus três amigos.
        -Sua prima é uma gracinha... - disse Ranhento. Ele era um moleque franzino, feio e desengonçado, que usava óculos muito maiores do que devia e tinha várias espinhas pelo rosto. Além disso, o toque final, que lhe deu o apelido: seu nariz estava quase sempre escorrendo.
         Renato nem respondeu, já estava acostumado com os comentários de seu amigo sobre mulheres bonitas, mesmo que ele nunca ficasse com nenhuma delas. Ainda mais Marina, que tinha o ego do tamanho de uma montanha. Durante toda a festa, quis aparecer mais que o aniversariante, que convencida. Os outros dois amigos do garoto eram muito mais “normais”, por assim dizer. Gago era um rapaz forte, alto e por que não dizer? Até um pouco bonito. Mas quando abria a boca, podia-se notar o motivo de um rapaz que poderia ser tão popular andar com os perdedores da escola: Gago era, como seu apelido dizia, gago, e isso lhe causava um tremendo desconforto na hora de falar com as pessoas, pois ele também era muito tímido, e se atrapalhava facilmente com as palavras. Apesar dos pesares, era uma peça importante para o time de basquetebol da escola, por ser um grande jogador.
        Maria era ruiva, gordinha e comum, sem beleza alguma, e talvez, com menos personalidade ainda. Andava a maior parte do tempo apática, e falava muito baixo e pausadamente. Somente com esses três amigos ela se abria mais, falando mais do que sim, não e não sei.
        O mais fácil de descrever da turma era Renato, um moleque baixinho e magricelo,  com o carisma de uma ameba. Juntos, esses quatro faziam parte da turma mais ridicularizada da escola: os otários do terceiro ano, como eram chamados. A falta de respeito com eles era tamanha que até os alunos do primeiro ano gozavam com suas caras.
        -Bem, pessoal, acho que vou para casa, senão minha mãe me mata. - disse o Ranhento, puxando o ranho para dentro do nariz.
        -E-e-e-e-eu v-v-vou ju-ju-junto-to pe-pe-pessoal. - disse Gago.
        E assim os dois foram, deixando somente Renato e Maria na sala, já que os pais haviam ido se deitar e Lisa tinha saído para a casa de uma amiga. Os dois ficaram quietos olhando televisão, enquanto um ar de tensão pairava sobre eles. Era óbvio que a garota tinha alguma coisa para dizer a seu amigo, mas estava envergonhada demais para o fazê-lo. Ao invés disso, só olhava insistentemente para o lado, como se estivesse esperando que a hora certa chegasse, ou então que alguém lhe perguntasse no que ela estava pensando. De repente, Renato virou a sua cabeça para ela, e seu desejo foi atendido:
        -Ei, Maria.
        -Sim? - respondeu ela, com o rosto todo avermelhado, e um leve sorriso no canto do rosto.
        -Quer comer um sanduíche? Tô morto de fome.
        Não era bem o que ela queria ouvir, mas assim ela criou coragem e falou o que queria dizer:
        -É... pra você.
       A garota mostrou um estranho medalhão roxo para Renato, que não segurou uma expressão de desagrado quando o viu, para a infelicidade dela. Ele tinha cerca de cinco centímetros de circunferência e estranhos entalhes em forma de fogo e nuvens, pelo que parecia.
        -Que coisa gay. Foi mal, mas eu não quero isso.
        A cara de decepção no rosto de Maria era deprimente. Ela escolhera esse presente com tanto afinco, somente para ele ser rejeitado assim, na primeira olhada.
        -Sabe... - começou ela, sem confiança no que dizia - Ele é um amuleto da sorte...
        Ele não acreditava muito nisso, mas em nome de sua amizade com ela, aceitou o presente. Sabendo logo em seguida que ela o tinha comprado de uma cigana... blá blá blá.
        Foi dormir, exausto, e quando acordou na manhã seguinte, lembrou que tinha uma prova de matemática. Logo sobre pirâmides! Ele não entendia nada daquilo... Sabendo que no primeiro dia de sua nova vida já ia se dar mal, decidiu colocar a porcaria do medalhão no pescoço, por dentro da camiseta, mais do que alguma gozação, caso alguém descobrisse, não ia acontecer.
        O café da manhã estava delicioso. Torradas e pão-de-queijo, seus lanches favoritos. Logo que saiu de casa, viu como o tempo estava lindo, e pensou que mesmo que o resto do dia fosse um lixo, só aquela luz morna da manhã havia salvado seu dia.
        Na escola, a turma que mais lhe incomodava tinha faltado. Ele ouviu boatos de que eles foram pegos enquanto pichavam as paredes do ginásio da escola antes da hora. Foi tentando estudar até o terceiro período, a fatídica hora da avaliação, mas não obteve sucesso algum.
        Grande merda de amuleto da sorte, lhe garantiu paz na escola, um dia bonito e um bom café da manhã, mas ele ainda não sabia porcaria nenhuma sobre o conteúdo. Porém, a esperança é a última que morre, e ele esperava poder colar de alguém na hora da prova.
        Deu azar. Ficou rodeado de burros e CDFs egoístas, que nunca passariam cola para ele. Nem Maria, que já tinha lhe ajudado uma ou duas vezes, estava sentada perto dele hoje. Que professora cretina! Parece que ela sabia que ele estava somente esperando uma chance.
        Nove e dez em ponto. O teste começou.
        Ele foi folheando lentamente as duas páginas da prova, vendo se sabia ao menos responder alguma coisa, para não ficar com zero. Mas o infeliz não sabia nem calcular a superfície da base de um tetraedro, quando mais o volume dele! O que hf significava? O que diabos era uma aresta mesmo? Ele odiava essa matéria, e não fazia ideia de como conseguira esquecer completamente da avaliação. Pensando bem, desde que recebera o “amuleto da sorte”, tinha tido mais ônus do que bônus.
        Nove e vinte. Ainda sem ideia do que fazer.
        Maldição! Ele ia se ferrar! Sabia que talvez nem passasse de ano se não fosse bem no segundo trimestre, pois tinha tirado vermelha no primeiro e esse era o último teste do trimestre. A recuperação englobaria muitas outras matérias, e ele não teria nem chance! Não, ele simplesmente não conseguiria aguentar outro ano daquilo!
        Onze anos! Onze anos de dor e sofrimento na mão dos colegas impiedosos. Todos riam dele, todos o odiavam! Mas por quê? Só porque ele era fraco em força e em vontade? Não seria concedida a ele uma chance de viver em paz em sua mediocridade? Por favor, Deus, mais um ano daquilo não!
        Nove e meia. Nada respondido ainda. Aluno à beira do choro.
        Ele tinha de arranjar um jeito! Era agora ou nunca! Renato tentou olhar por cima do ombro de seu colega, mas este percebeu e se colocou entre ele e a folha da prova. Quando ele ia tentar pela segunda vez, a professora olhou para ele. O garoto não fazia ideia se ela tinha visto alguma coisa, mas decidiu ficar na dele, pelo menos enquanto o desespero não lhe consumisse e ele apelasse para qualquer coisa.
        Nove e trinta e seis. Ápice do desespero.
        Uma prova em branco, um aluno pálido e temeroso.
        Uma professora esperta, um CDF filho da puta.
        A soma de tudo isso é igual ao fim da esperança. Renato baixou a sua cabeça sobre a prova e deitou-a na mesa. Queria chorar, gritar para alguém por favor lhe dar as respostas e lhe deixar acabar com aquele tormento chamado de escola, mas ele não faria isso. Pois ririam mais ainda dele, talvez até a professora risse junto. Todos odiavam ele, isso era um fato. Ele não tinha paz, não tinha descanso ou água fresca. Ainda lembrava de semana passada.
        Os mesmos garotos que picharam o ginásio tinham lhe dado uma surra. Por quê? Porque ele podiam. Eram maiores e mais fortes, e odiavam ele, o mundo odiava ele. Antes de fazer dezoito anos, o pobre garoto sabia que tudo ia mudar. Hoje, ele tinha absoluta certeza de que nada mudaria.
        Nada nunca muda.
        Segunda após segunda.
        É sempre mais do mesmo.
        Um eterno ciclo de dor e sofrimento.
        NÃO! ELE NÃO IRIA SE RENDER!!!
        Sentiu uma pontada aguda no peito e depois um calor em seu corpo todo. Foi uma sensação muito estranha, de euforia, incerteza e confiança de que tudo ainda daria certo. No instante seguinte, outra pontada, dessa vez junto dela veio um frio na espinha e uma náusea forte. O garoto se segurou, e por alguns segundos, esqueceu de tudo, da prova, da escola, do sofrimento, da merda toda.
        Nove e quarenta e um. A professora, depois de um longo período de silêncio, voltou a falar.
        -Anderson! Colando de novo!?! Tâmara, saia já daí e troque de lugar com o Alberto, eu sei que você estava passando cola pra ele!
        Contrariada, a morena foi se sentar no lugar de Alberto, na frente de Renato. Aquela foi a salvação dele, pois além de ser muito inteligente, Tâmara ajudava a todos sem pedir nada em troca, e deu todas as respostas ao garoto, que lhe agradeceu do fundo do coração. “Que sorte”, ele pensou, lembrando-se do medalhão roxo no mesmo instante.
        Pouco antes das dez horas, ele já tinha respondido todas as questões. Todas elas certas, esperava ele. Estava tão profundamente aliviado, que nem se lembrou mais do medalhão ou das sensações estranhas que teve antes da professora trocar a garota de lugar.
        Durante o intervalo, falou sobre sua repentina sorte com os amigos, e então Maria perguntou se ele estava usando o medalhão. Ainda sem acreditar nos supostos poderes mágicos do amuleto, ele disse que isso não tinha nada de especial. Fora só sorte.
        Na volta para casa, Renato quase foi atropelado, mas se distraiu com uma mulher que gritava pela janela com o marido e não deu um passo à frente, que teria sido seu último. A tarde fora ainda melhor, a mãe ficou em casa e fez uma pizza, além disso, ele foi convidado pelo vizinho novo para jogar videogame em sua casa. Ao final do dia, o garoto deitou em sua cama e decidiu usar o medalhão no dia seguinte novamente.
        Os pichadores ainda estavam suspensos. Ele acertou uma questão difícil quando foi perguntado, e todos se surpreenderam. Na aula de educação física, ele errou um chute e ainda conseguiu fazer o gol, seu primeiro naquela escola, mesmo ele jogando há três anos em todas as aulas. Na volta, ele ainda achou uma nota de cem reais verdadeira no chão. Aquele fora um ótimo dia, que acabou com ele ficando sozinho em casa, e podendo assistir seu programa favorito na televisão.
        Quem diria que a mágica dos dezoito anos viria de um minúsculo medalhão feio? É, a vida era realmente uma caixinha de surpresas.
        Quinta-feira. Renato descobriu que tirou dez na prova de matemática. Estranhamente ele começou a ficar mais popular na sala, todos queriam a atenção dele, e os antigos desafetos agora pediam desculpas. Foi se sentindo cada vez mais confiante no poder do medalhão, e ainda nesse dia, começou a tentar coisas mais improváveis. Primeiro, se jogou da escada do colégio, somente para cair nos arbustos sem se machucar. Começou uma conversa aleatória com um universitário na rua e conseguiu um novo amigo. Apostou dez reais num jogo de cartas, ganhou. Apostou de novo, ganhou de novo. Ele quis apostar cem reais, mas ninguém mais quis jogar com ele. O pai ganhou um novo emprego que pagava o triplo do anterior.
        Sexta-feira. Parecia ser a pessoa mais popular da sala e ganhou uma gincana feita nos últimos dois períodos. Durante a tarde, jogou cartas com os homens do dia anterior até lhes arrancar os últimos centavos. Em sua fuga, quando eles decidiram “reaver o dinheiro perdido de forma injusta”, os homens foram atropelados por um rolo compressor, algo não muito bonito de se ver, diga-se de passagem. Assim o sortudo começou a ver onde os poderes do medalhão chegavam.
        Em menos de duas semanas, ele era o ídolo da escola, sua família ganhava dinheiro como água e as garotas estavam todas apaixonadas por ele. Aquilo não era um simples medalhão da sorte, era um medalhão dos milagres!
        O que Renato não via era como o medalhão tinha mudado o seu comportamento. Antes simpático e fiel aos amigos, agora ele era arrogante, impaciente e mandão. Pouco se importava com os velhos companheiros, na verdade, parecia ignorá-los friamente. Muitas vezes os três tentaram falar com ele, sem sucesso.
        O ápice de tudo foi numa sexta-feira, perto do Dia dos Finados. Renato convenceu Pâmela a sair com ele. Ela era simplesmente a mais linda e perfeita estudante dos terceiros anos da escola. Com longos cabelos loiros e olhos azuis profundos, a garota era o sonho de consumo de todos os caras da escola, e por que não da cidade? Sim, ela era a perfeição esculpida em gente, com suas curvas e todo o seu charme apaixonante.
        Os dois iriam a um restaurante no centro da cidade durante a noite, na mesma hora que o sortudo tinha marcado com seus velhos amigos, na casa dele. Eles tinham insistido tanto naquilo que ele não conseguiu dizer não, apesar de agora ver eles como otários, assim como todo o resto da escola fazia.
        Já estava escuro quando o garoto ia saindo de casa, e quando ele abriu a porta da frente, deu de cara com um grupinho bem conhecido por ele:
        -Olá, Renato! - disse Ranhento alegremente.
        Ele ficou de cara fechada na mesma hora. Tentou dizer que estava ocupado e que não poderia atender eles agora, mas eles insistiam veementemente em conversar com ele. Mesmo os apelos deprimentes de Gago não o convenceram:
        -P-p-p-por... f-f-fa-fa...
        -Calem a boca!!!
        A expressão no rosto de Renato era de pura cólera. Como aquele bando de idiotas ousava ficar no caminho dele!?! Será que eles não enxergavam que agora ele estava em um outro nível? Que eles eram a reles escória, um lixo que nem merecia lhe dirigir a palavra? Porra, ele era O Sortudo, aquele que controla a vida e a morte com o poder da sorte! Ele era imensamente superior àqueles ridículos.
        -Querem saber por que eu não quero perder meu tempo com vocês? Querem mesmo? Porque vocês são uns merdas, uns otários, uns verdadeiros perdedores! Mas eu não! Não mais! Não vou mais conversar com vocês, seus lixos!!! HAHAHAHAHAHA!!!
        Foi nessa hora que os três perceberam. Aquele não era o amigo que eles conheceram há muito tempo atrás, aquele era O Sortudo, uma entidade superior que pode desdenhar de quem quiser, um imortal, um ídolo, um sortudo. Não havia nada mais que eles pudessem fazer para aquela alma abençoada com o poder da sorte voltar a si. Assim, ele se foi, deixando os três parados na frente da casa amarela.
        -Não acredito... - disse Ranhento, decepcionado.
        -E-e-eu de-de-de-desisto! - falou Gago, virando de costas e seguindo pelas ruas escuras.
        -E você, Maria?
        A garota parecia estar distante, mas isso não era novidade para ninguém. Ela sempre agiu assim, principalmente quando o assunto eram os sentimentos dela para Renato.
        -Maria? Maria!
        -Ahn? Ah, eu... eu... preciso ajudá-lo!
        -Eu já perdi as minhas esperanças, deixe-o. - puxou o ranho para dentro do nariz - Ele não te merece...
        Mas Maria não ouviu, ela pensava somente no que a cigana tinha lhe contado ontem, e em como isso repercutia em seu amigo. Sem pensar ou olhar para trás, ela correu atrás de Renato.
        O centro estava iluminado naquela noite. O Sortudo estava iluminado. Ele desejou que a noite fosse perfeita, e até agora, estava sendo. Enquanto ele conversava alegremente com a garota de seus sonhos, um homem muito talentoso tocava violino ao fundo. Ele exalava confiança, charme e simpatia, coisas que nunca teve antes, mas agora, ele era poderoso. Sabia que se quisesse, poderia ter tudo, ele poderia matar o garçom com o garfo, e ninguém veria que foi ele. Sim, esse poder desafiava a lógica, mas isso não importava, pois era muito bom se sentir daquele jeito.
        Nem sequer lembrava dos tempos dolorosos em que era um excluído, ou de como chorava à noite sozinho. Não lembrava das surras ou das humilhações, somente da alegria de ser O Sortudo. Certo, ele devia isso a Maria, aquela gorda ridícula, mas dane-se ela, um Deus não precisa mostrar respeito ou gratidão a ninguém.
        Essa noite seria a noite que iniciaria seu império de sorte sobre o mundo. Ele iria perder sua virgindade com a garota mais bonita da escola. Talvez ainda restasse um pouco de humanidade na mente daquele ser superior, pois ele mal conseguia acreditar nisso, parecia um sonho distante se realizando.
Foi nessa hora, que aquele brilho dourado se apagou. De uma vez por todas.
        Maria entrou eufórica no restaurante, procurando por Renato. Assim que o viu, correu até ele, esbarrando no garçom, e nem parando para pedir desculpas. Chegou à mesa, respirou fundo, e disse, sob os olhares furiosos de seu amigo e da acompanhante dele:
        -Renato, nós precisamos conversar!
        -Sai daqui, garota! Não vê que eu tô ocupado!?!
        -É sério, por favor, Renato, eu tô implorando!
        -Ah, cai fora! Garçom, me faça um favor aqui!
        Maria agarrou-o pela gola da camisa e então gritou bem em frente ao seu nariz:
        -É questão de vida ou morte! E é pra você! É sério... - ela estava ficando cada vez mais desesperada.
        -Por que você se preocupa tanto comigo, hein? Vai viver a sua vida!!!
        -Porque eu te amo! - finalmente a garota estava aos prantos. Pâmela achava graça da situação toda.
      -HAHAHAHAHAHA!!! você acha que uma garota feia como você tem chance comigo!?! HAHAHAHAHAHAHA!!! - ele quase caiu da cadeira de tanto rir. - você é uma piada mesmo! HAHAHAHAHAHAHAHAHA... Eu não consigo mais nem rir... Viu o que você fez comigo? HAHAHAHAHA!!!
        Pâmela também ria da situação, afinal, um de seus passatempos favoritos sempre foi humilhar os outros.
        Engolindo o choro, Maria disse uma última coisa, antes de sumir de uma vez por todas da vida de Renato, O Sortudo:
        -A cigana disse para devolver o medalhão. Ou “eles” virão atrás de você. - virou suas costas e saiu, talvez utilizando o último pingo de dignidade que restou em sua vida inútil.
        Maria se mataria enforcada no dia seguinte, e os motivos que a levaram a fazer isso, nunca mais foram comentados por ninguém.
        No restaurante, o brilho da noite se apagou. Tudo continuava a correr perfeitamente, mas a noite já tinha sido manchada. De qualquer forma, o brilho pouco importava, pois logo o clima mudaria drasticamente.
        E isso não demorou nem vinte minutos para acontecer. Dois homens entraram juntos no lugar. Ambos eram grandes, altos e fortes, além de serem carecas e estarem usando ternos caros e bem recortados, juntos de óculos escuros. Um deles era negro, com a pele realmente escura e o outro branco, de pele mais bronzeada. O Sortudo parou de brilhar nesse instante. Sentiu mais uma forte pontada no peito, que inundou a sua existência divina (seria tão divina assim?) de dor, e o fez se arcar e gemer. Antes que sua acompanhante pudesse perguntar qualquer coisa, os dois já tinham chegado na mesa dele, um de cada lado, olhando com seus sorrisos malignos e ferozes. Se não estivesse vendo duas pessoas ali, Pâmela diria que estava cercada por pitbulls ferozes.
        Renato não sabia quem eram eles, mas sabia que eram “eles”, os caras dos quais Maria tinha falado. E sabia muito bem o que eles queriam, todos os três sabiam, mas ele nunca se renderia, nunca mais voltaria a ser o motivo de risadas de todos na escola!
        Sem falar nada para Pâmela, ele levantou da cadeira rapidamente e empurrou o homem negro para trás, este bateu no garçom, que carregava um prato cheio de gelos e escorregou quando tentou se levantar da queda. Era a oportunidade de que ele precisava. Saiu correndo o mais rápido possível para o lado de fora, sem temer quando ouviu uma arma sendo engatilhada, pois sabia que os tiros não o acertariam.
        E estava certo, os cinco tiros disparados pelos homem erraram, um deles matando uma grávida inocente, mas Renato não estava nem aí para isso. Ele correu para a rua, muito mais sombria e deserta do que antes. Sua sorte foi que quando um dos homens tentou atravessar a rua, foi atropelado por um caminhão e jogado longe.
        Assim, ele corria desesperadamente pelas ruas, em uma corrida sem equilíbrio para lado algum. Enquanto os homens eram fortes e pareciam ser bem treinados, ele tinha a sorte do seu lado. Mas cada vez mais o homem negro se aproximava,  isso deixava Renato desesperado. Ele podia fazer o que quisesse que não retardava o avanço do homem. Pior ainda, o que tinha sido atropelado estava correndo mais atrás, como se nada tivesse acontecido com ele!
        Aos poucos, o garoto ia se sentindo mais e mais exausto, e suas pernas pareciam estar ficando mais pesadas a cada passo. A distância diminuía, mesmo que os homens não parassem de tropeçar ou ser acertados por vasos caindo do céu. Nem mesmo quando um piano caiu encima do homem negro ele desistiu!
        Eles pareciam demônios vindos do inferno para buscá-lo, ou melhor, para buscar seu amuleto protetor. Ele não tinha tempo para pensar, mas sua mente confusa e cansada ficava lembrando de toda a glória alcançada com o medalhão roxo e de todo o sofrimento sem ele. Ele não iria desistir por nada, nem que isso o levasse para o inferno!
        De repente, notou que o homem branco, que estava mais próximo, não estava mais correndo atrás dele, somente o negro, que parecia estar a menos de um minuto de alcançá-lo. Seu susto foi enorme quando ele viu seu outro perseguidor aparecendo na sua frente, e bloqueando seu caminho. Seria o seu fim? A queda de um auto-proclamado Deus? Não, a sorte ainda estava do seu lado, pois havia uma viela do lado esquerdo dele. Sabia que estaria perdido se entrasse lá dentro, mas também sabia que seria pior se fosse pego ali mesmo.
        Sendo assim, entrou na viela e correu, mas após alguns metros, encontrou-se de frente para um beco sem saída. Como assim? Não conseguia acreditar naquilo. Era impossível, ele sempre escapava, pois ele era Deus, não era? Não era? NÃO ERA!?!
        Os dois homens sorriam de uma maneira que ser humano algum conseguiria fazer. Era de alguma forma abissal, profano. Suas línguas pontiagudas saíam para fora das bocas com dentes brancos, enquanto faziam movimentos serpenteadores no ar, então eles riam com suas vozes inumanas, que mais pareciam gemidos vindos do mais profundo abismo no inferno. Eles largaram as armas, estava claro que não precisariam delas.
Renato olhou para a esquerda, somente tijolos. Mas quando olhou para a direita, viu uma porta, provavelmente estaria trancada, mas ele ainda era O Sortudo, pelo menos enquanto não fosse pego pelos dois homens. Entrando pela porta, ele se viu dentro de uma construção abandonada, provavelmente um hotel. Tateou pelo escuro à procura de um interruptor, e não só o achou, como tinha luz também. Nenhuma improbabilidade era páreo para ele, afinal. Correndo pelos corredores do lugar acabou achando uma pistola com um cartucho de balas, cortesia do medalhão roxo.
        Mesmo estando armado, ele sabia que tinha poucas chances contra criaturas que sobreviveram a serem atropeladas algumas vezes. Então foi subindo as escadas, pois era só o que podia fazer. As paredes faziam estranhos barulhos, que mais pareciam gritos de dor. Ele chegou inclusive a ver sangue escorrendo das paredes certa hora. Mas mesmo morrendo de medo, ele tinha de seguir em frente, pois o medo que sentia era absoluto.
        Finalmente acabou por chegar ao telhado, onde tentou respirar, mas cuspiu sangue. Tudo começou a rodar, e ele sentiu dores excruciantes por cada ponta do seu corpo, caindo ao chão, imóvel.
        Quando conseguiu se levantar, a única coisa que viu, foram os dois homens aparecendo pela porta do elevador, o maldito elevador. Eles agora riam mais alto, e a lua parecia exalar trevas ao invés de luar. Com sangue saindo por sua boca, nariz e orelhas, Renato atirou às cegas, esperando que sua sorte ajudasse. E ajudou, pois de alguma forma, ele conseguiu matar uma das criaturas, a que parecia um homem branco. A coisa acabou virando uma massa disforme e apodrecida, fazendo barulhos tão horríveis que por um momento o garoto achou ter ficado surdo.
        Quando ele conseguiu levantar, não sabia se isso era mais nem sorte ou força de vontade. Infelizmente, ele foi agarrado pela criatura restante, que já estava sem óculos. Seus olhos eram tão negros que Renato começou a choramingar como uma criança, implorando pela sua vida. A criatura usou sua língua comprida e gosmenta para lamber o rosto do rapaz, o tipo de lambida que faz você ter vontade de morrer. Ele sentiu um de seus braços sendo quebrado, não, esmigalhado, enquanto a criatura ria e o encarava.
        Nessa hora, ele rezou humildemente para que o medalhão lhe desse uma última sorte, e assim seu desejo foi concedido.
        Ele foi jogado prédio abaixo, mas caiu em um lixo macio, que salvou sua vida.
        Correu.
        Correu por sua vida.
        Correu por seu futuro, sua existência.
       Sentia que não estava mais na Terra, aquele lugar era sombrio e macabro, as ruas estavam irreconhecíveis. Após alguns minutos correndo sem saber para onde ia, parou em uma ponte. Podia estar bizarramente diferente agora, mas aquela certamente era A Ponte, pois do outro lado, ele via seu mundo novamente.
        Só mais alguns passos.
        Era impossível, o garoto desabou.
        “Sua sorte acabou”, foi o que disse uma vozinha em sua cabeça.
        O garoto sorriu.
        Dois anos e meio atrás, aproximadamente, eles os conheceu ali, naquela mesma ponte. Ranhento, Gago e Maria. Era uma viagem de escola, no primeiro mês das aulas, e o ônibus tinha quebrado. Os quatro perdedores acabaram sendo excluídos juntos, e juntos ficaram. O Azarado já teve amigos, já foi O Sortudo, mas isso tudo muito antes daquela porcaria de medalhão roxo. Ele agora era somente um Azarado, que trocou uma ilusão pela amizade de seus companheiros e um amor sincero. Pensou: “Renato, você é um grandessíssimo filho da puta” e riu.
        Estava preparado para morrer. Sabia que ia morrer, mas não se importava mais. Não tinha nada para ele do outro lado da ponte mesmo. Arrancou o medalhão e jogou para a criatura.
        -Sua sorte acabou. - disse ela.
        -Acabe logo com isso. - disse O Azarado.
        -Com todo o prazer.
Renato foi espancado até não aguentar mais, sempre sendo rolado pela ponte, com as risadas do homem infernal.
        -Você não vai acabar logo com isso? Me mate!
        A criatura riu.
        -Quem disse que vou te matar?
        O Azarado foi pego e jogado do outro lado da Ponte, então tudo escureceu.
        Quase cinco meses depois, Renato acordou em uma cama de hospital, sua mãe e sua irmã estavam lá.
        -Você acordou! Ah, graças a Deus!
        Renato olhou em volta e perguntou onde estava.
        -Mãe? Onde estou?
        Ela olhou docemente para ele e deu um sorriso triste. Mas não precisaria nem responder para o garoto poder adivinhar, ele estava num hospital.
        -Bem, você ficou um longo período em coma, querido... Me desculpe, se eu pudesse...
        Ela parecia demasiado triste lembrando daquilo, então ele decidiu mudar de assunto:
        -Como vão meus amigos? Ranhento, Gago, Maria... - deu um longo suspiro assim que acabou de falar.
        -Os garotos se mudaram da cidade. E Maria... - “Não, não podia ser pior... simplesmente não podia.”  pensou Renato.
        -Desculpe filho, ela morreu.
        Aquilo arrasou o garoto, mas o pior ainda estava por vir...
        -E a escola, mãe? O que aconteceu comigo?
        -Você repetiu de ano, vai ter voltar lá e fazer tudo de novo. Mas não é tão ruim, certo? Você poderá fazer novos amigos!
        Em algum lugar, alguma criatura usando o medalhão roxo riu, não, ela gargalhou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário